17 de fevereiro, de 2020 | 14:30

Não há boa fé na América

Gaudêncio Torquato *

“No Congresso, o desfile de falas e caricaturas se estenderá até as margens do pleito de outubro”

O lamento do timoneiro Simon Bolívar, expresso há dois séculos, parece apropriado para explicar esses tempos tão conturbados: “Não há boa fé na América, nem entre os homens nem entre as nações. Os tratados são papéis, as constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia e a vida um tormento”. O cotidiano nacional que o diga.

A desconfiança grassa. A boa fé entre os homens se esvai com a poeira das falsidades. As emboscadas se multiplicam. Matar? Coisa banal. A política é uma colcha de retalhos. Partidos são fontes de negócios. Hoje, há 33 e daqui a pouco, se não houver um basta, chegarão a 70. O governo vai tocando sua orquestra com seguidas mudanças de músicos, com destaque para generais de grande expressão. Tem dois pilares de destaque: um pilota a economia e é chamado de “Posto Ipiranga”; outro comanda a Justiça e a Segurança Pública, podendo vir a ser um quadro importante no pleito de 2022.

Ontem, petistas semeavam o ódio com o refrão “nós e eles”. O maestro, Luiz Inácio, continua glorificando os tempos da “redenção nacional”, sob o lema: “nunca se fez tanto na história no Brasil”. E não reconhece os desvios que governos petistas cometeram e que resultaram na maior recessão econômica da história.

Hoje, bolsonaristas cultivam a divisão social com o refrão invertido “eles e nós”, sob a égide de um capitão que tenta desfraldar a bandeira do “afastamento do país” da ameaça comunista. Cada qual com seu bornal. Os Poderes vivem às turras, disputando o ranking das polêmicas.

Dias Tofolli, o presidente do STF, havia decidido implantar a criação do “juiz de garantias” em 180 dias; o vice-presidente Luis Fux barrou sua pretensão, suspendendo a questão por tempo indeterminado. O governo tinha urgência em aprovar a reforma administrativa. Dispõe-se, agora, a arquivá-la. E a tributária? Uma briga de cachorro grande. No Congresso, o desfile de falas e caricaturas se estenderá até as margens do pleito de outubro. Ainda sob os velhos tempos do livrinho de São Francisco: “é dando que se recebe”.

A Constituição, um amontoado de detalhes, abre espaços para litígios. Muitos de seus artigos e incisos não são obedecidos. Quando a lei maior deixa de ser cumprida engendra-se uma cultura de impunidade e desorganização. Assim, os tratados constitucionais perdem força, transformando-se em letra morta.

E as eleições? Vejamos a deste ano, a se realizar em outubro. Serão uma batalha renhida, onde não faltarão impropérios, fake news, denúncias recíprocas entre situacionistas e adversários, muita calúnia e farta difamação, compra de votos (sim, isso continuará), cooptação com emprego, distribuição de benesses. A política, como exercício de defesa de um ideário, missão para salvaguarda dos interesses coletivos, se transforma em negócio. E que negócio.

De missão transforma-se em profissão. Aristóteles jamais imaginou que a arte de fazer o bem fosse usada para multiplicar os bens de alguns. Milhões inundam os cofres partidários. Vai ser uma briga danada disputar os nacos.
A liberdade, esteio da democracia, vira baderna gerada por liberalidade extrema, improvisação, irresponsabilidade, invasão dos espaços privados. Vituperar contra a imprensa torna-se prática predileta de governantes (e da oposição, exemplo é Lula). O escopo libertário esculpido pela Revolução Francesa mais parece fantasia. Dignidade e Cidadania? Sim, para uns. Para milhões, nada. O inimigo, que era o Estado opressor, veste a roupa do Estado coletor. Impostos e tributos sobem a montanha. Vilania e torpeza conspurcam o altar dos direitos e da igualdade.

Os cárceres agora são escritórios da violência. Comandam exércitos que traficam armas e drogas. A morte por assaltos ou balas perdidas pega gente de todas as idades. Milhares de leis são papéis rotos. Descumpridas. A anomia ganha corpo. Os órgãos de controle e defesa social – MP, PF, AGU, entre outros – disputam poder. A angústia do desemprego fustiga quase 12 milhões de brasileiros. A Operação Lava Jato perde força. Grupos continuam a se incrustar na administração pública – nos níveis federal, estadual e municipal. Interesses escusos. A corrupção acabou? Nada. Pode ter diminuído um tiquinho. É mais tecnológica.

O lamento de Simon Bolívar está escrito tanto nos mais centrais como nos mais longínquos cantos do território. Claro, sem falar nas terras venezuelanas, onde Maduro está caindo de podre.

* Jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação. Twitter@gaudtorquato
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Comentários

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Tião Aranha

17 de fevereiro, 2020 | 21:01

“Entre um cuspido e outro, Simon bolívar dava apenas três minutos para que a sua ordem fosse cumprida, e era o tempo da saliva secar do chão. Estamos pagando caro por não termos uma cultura própria e nem nossos governantes terem investido numa educação de qualidade, após a segunda grande guerra. Não vai demorar muito o slogan da bandeira vai virar desordem e regresso. Felizes são os intelectuais que ainda conseguem se equilibrar entre a direita e esquerda porque está difícil manter o foco de objetivo em meio a tantas adversidades.”

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