10 de fevereiro, de 2020 | 14:40

O respeito à liturgia

Gaudêncio Torquato *

“Um presidente, um magistrado, mesmo um representante da esfera parlamentar, autoridades de quaisquer áreas se vestem com um manto litúrgico”

Cada governante com suas manias. Idi Amin, ditador de Uganda, dizia que conversava com Deus. Um jornalista jogou a pergunta: “quando”? Ele: todas as vezes que se faz necessário. Era um contador de lorotas. A história registra casos de governantes que se colocavam em pé de igualdade com Deus. Em Gana, os ganenses comparavam o ditador Nkrumah a Confúcio, Maomé, São Francisco de Assis e Napoleão. Ele é “imortal, nosso messias”. Franco proclamava-se “Caudilho da Espanha pela graça de Deus”.

Giscard D’Estaing, chegando à presidência da França, inventou maneiras de popularizar sua imagem. Tocava acordeon em praças públicas, andava a pé por Paris, ia ao teatro com a família, tomava café com varredores de rua, desfilava com seu cão amestrado. Um adepto do dandismo, fenômeno que explica pessoas que têm o prazer de espantar. Foi criticado por exagerar a dessacralização do poder.

Nisso, inspirava-se em Luis XIV, o rei que se exibia em Versailles montado em seu cavalo crivado de diamantes. Dizia ele: “os povos gostam de espetáculo, com o qual dominamos seu espírito e seu coração”.
Já outros se levam mais a sério. Convidado numa festa a tocar cítara, Temístocles, o ateniense, altivo e poderoso, respondeu: “não sei tocar música, mas posso fazer de uma pequena vila uma grande cidade”. De Gaulle, eis um general que impunha respeito. Não precisava se enfeitar nem adoçar as palavras para impor autoridade. John Kennedy brilhava na frente de uma câmera de TV. Nixon, por sua vez, era uma lástima.

O fato é que os governantes, cada um a seu modo, se esforçam para dar brilho à imagem. E, frequentemente, trocam a semântica pela estética, o conteúdo pela forma. Quando o exagero sobe a montanha, a imagem se esfarela. O povo capta bem a fosforescência artificial de certos mandatários. Por isso, alguns sobem, outros descem.

Vejamos a questão da identidade - (do idem, latim, semelhante), abrangendo a história, o pensamento, a índole, as ações de um governante. Quando ele monta um circo ao seu redor, e esse circo passa a oferecer um espetáculo cotidiano, acaba contribuindo para tirar a força do conteúdo. Quando substitui a coisa maior pela menor, desmonta a liturgia do poder. Liturgia necessária para resguardar credibilidade. A banalização de situações arrogantes, com cargas de desleixo, embrulhadas em versões falsas, é um golpe na liturgia das instituições e de seus ocupantes.

Um presidente, um magistrado, mesmo um representante da esfera parlamentar, autoridades de quaisquer áreas se vestem com um manto litúrgico, sob o qual se abrigam os valores do respeito, da ordem, da credibilidade, da disciplina e da norma imposta pelo cargo. Quando um destes figurantes maltrata uma liturgia criada pelo dever e princípios que regulam os comportamentos da autoridade, está ele rebaixando o seu conceito.

Deve-se respeitar as pessoas como elas são. Mas é sábio que todos procurem preservar a ordem que se estabelece para cumprimento retilíneo das tarefas que cabem a quem se investe de poder. É respeitável a figura que desce do altar para conversar com as pessoas nas ruas, nas praças, nos ambientes de trabalho. Mas há uma linha tênue que deve ser observada, a linha que separa a responsabilidade da demagogia, a seriedade do populismo.

Pequeno exemplo. O Brasil político de 2020 foi aberto com dois atos que integram a agenda nacional: a abertura do ano parlamentar, com sessão conjunta do Senado e Câmara; e a abertura do Ano Judiciário, com ato solene no Supremo Tribunal Federal. Esses eventos sempre contaram com a presença do mandatário-mor da Nação, o presidente da República. Que não compareceu, decidindo priorizar a colocação de uma pedra em terreno para construção de um colégio militar em São Paulo.

Um desprestígio para as esferas política e judiciária. Possivelmente, os próprios militares, que cumprem rigorosamente a liturgia da caserna, tenham desaprovado, em seu íntimo, aquele gesto presidencial.

O general Temístocles, o general De Gaulle e tantos outros grandes personagens deram exemplos de grandeza e autoridade. Mulheres também. Margareth Tatcher foi zelosa governante. Imbuída de princípios. Tinha um repertório cheio de grandes ideias. Até o Brasil mereceu dela essa reprimenda: “Parece-me bem claro que o Brasil não teve ainda um bom governo, capaz de atuar com base em princípios, na defesa da liberdade, sob o império da lei e com uma administração profissional”.

* Jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato /www.observatoriopolitico.org
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Comentários

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Tião Aranha

11 de fevereiro, 2020 | 02:24

“É preciso fazer um revive na consciência dos políticos no que tange ao sentimento de pátria. Ou será que a despadronização da globalização tornou-se, hoje, um sentimento mais forte? É preciso fazer uma análise, como dizia Lacan. Não adianta nada ter muita informação, muito conhecimento e pouca responsabilidade. Parece que o que vale mais é o mundo das experiências. A Política deveria ser regida por regras, sobretudo, baseadas nas vivências do coletivo.”

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