16 de janeiro, de 2020 | 14:20

Afinal, o que é ideologia de gênero?

Vinícius Siman *

“Não há lógica possível em se utilizar esse termo quando referindo-se a influenciar crianças a serem gays”


Visando a falta de conhecimento do que realmente é gênero e se a chamada ideologia de gênero de fato existe, escrevo este artigo para tentar esclarecer e embasar os discursos que permeiam os tempos atuais. O que é ideologia e que é gênero? O que é ideologia de gênero? Reli algumas obras para alcançar com clareza respostas sólidas para essas questões.

I – O que é ideologia? Essa primeira parte é propositalmente homônima ao livro da filósofa brasileira Marilena Chauí, que dissertou em 123 pequenas páginas o conceito histórico e atual do que chamamos ideologia. Segundo a filósofa, o termo surgiu logo depois da Revolução Francesa, em 1801, no livro Eléments d’Idéologie, de Destutt de Tracy. Tracy e um grupo de materialistas elaboraram uma ciência da gênese das ideias como se essas fossem algo natural que demonstram a relação homem-meio ambiente. Chauí, em O que é Ideologia, também fala sobre a concepção marxista de ideologia (um dos pontos principais para entender-se a terceira parte deste artigo). “As classes sociais não são coisas nem ideias, mas são relações sociais determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas condições materiais de existência, se dividem no trabalho, instauram formas determinadas da propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições sociais e políticas, representam para si mesmos o significado dessas instituições através de sistemas determinados de ideias que exprimem e escondem o significado real de suas relações. As classes sociais são o fazer-se classe dos indivíduos em suas atividades econômicas, políticas e culturais.” (CHAUÍ, 2008, p. 55).

Para Marx e Engels, em seus estudos sobre a concepção hegeliana, a ideologia baseia-se em “como o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e que sintetizam a sociedade civil inteira de uma época, segue-se que todas as instituições coletivas são mediadas pelo Estado, adquirem por meio dele uma forma política. Daí a ilusão, como se a lei se baseasse na vontade e, mais ainda, na vontade separada de sua base real [realen], na vontade livre.” (MARX & ENGELS, 2007, p. 76).
Podemos concluir, então, que a visão marxista de ideologia é no sentido de que as classes dominantes criam formas de entender o mundo para convencer os dominados de que a desigualdade entre classes é natural.

II – O que é gênero? A filósofa estadunidense Judith Butler (que causou grande rebuliço no Brasil recentemente) reestrutura o conceito de gênero beauvoiriano e aponta falhas de contextualização em Le Deuxième Sexe, da filósofa francesa Simone de Beauvoir. “Essa formulação radical da distinção sexo/gênero sugere que os corpos sexuados podem dar ensejo a uma variedade de gêneros diferentes, e que, além disso, o gênero em si não está necessariamente restrito aos dois usuais.” (BUTLER, 2003, p. 163).

Para Butler, a noção que temos de gênero deve ser reformulada, mas não de forma simplista, partindo do sexo como não-construído, como um meio passivo que age significados culturais; “tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos”. (BUTLER, 2003, p. 25). Gênero é, pois, além de construção social (e histórica), uma construção identitária do ser e algo que há de tratar-se com mais profundidade e complexidade do que vem sendo desde o início da segunda fase do movimento feminista a partir de 1949 com a publicação de Le Deuxième Sexe.

A grande polêmica envolvendo as discussões de gênero nas escolas do Brasil alcançou seu ápice em 2015, com o Plano Nacional de Educação, e reverberou nos municípios e estados fazendo surgir uma onda mais que assustadora de conservadores contra o PNE e o que denominaram “ideologia de gênero”, no sentido de que meninos e meninas seriam ensinados a cometer práticas homoafetivas e motivados a renegarem seu sexo biológico. A demonização da ideologia de gênero, a meu ver, fez com que os movimentos de luta pelos direitos humanos recuassem em questão a algo que nunca tinham ouvido falar. O termo tornou-se palavrão. Os conservadores dizem que os progressistas inventaram o termo, que por sua vez dizem que os conservadores o inventaram e que, na realidade, esse termo não existe. Pois, boquiabertos que estejam, anotem: o termo existe e consta na literatura pela primeira vez em 2004, no livro da socióloga e feminista brasileira Heleieth Saffioti. Para definir o conceito de Saffioti acerca da “ideologia de gênero” seguindo o raciocínio com mais independência e clareza, passaremos para a próxima parte.

III – O que é ideologia de gênero? Como disse anteriormente, o termo “ideologia de gênero” aparece pela primeira vez na literatura no livro Gênero, Patriarcado, Violência, de Heleieth Saffioti, mas não tem relação alguma com o que apoiadores do programa Escola Sem Partido e anti-butleristas sugerem ao invocar as temidas palavras. Para a boa compreensão do que Saffioti definiu “ideologia de gênero”, é de suma importância não ter passado apenas os olhos pela primeira parte deste artigo, onde defino o conceito marxista de ideologia, que foi o utilizado pela socióloga.
Relembrando superficialmente: ideologia, para Marx e Engels, é o conjunto de ideias que dominantes criam para entender o mundo e naturalizar a desigualdade de classes. Substitua-se “dominantes” (na conotação capital que Marx sugere) por patriarcado e “desigualdade de classes” por submissão feminina, misoginia e machismo. Eis o que Heleieth Saffioti denominou ideologia de gênero.

“(...) o gênero, embora construído socialmente, caminha junto com o sexo. Isto não significa atentar somente para o contrato heterossexual. O exercício da sexualidade é muito variado; isto, contudo, não impede que continuem existindo imagens diferenciadas do feminino e do masculino. O patriarcado refere-se a milênios da história mais próxima, nos quais se implantou uma hierarquia entre homens e mulheres, com primazia masculina. Tratar esta realidade em termos exclusivamente do conceito de gênero distrai a atenção do poder do patriarca, em especial como homem/marido, “neutralizando” a exploração-dominação masculina. Neste sentido, e contrariamente ao que afirma a maioria das(os) teóricas(os), o conceito de gênero carrega uma dose apreciável de ideologia. E qual é essa ideologia? Exatamente a patriarcal, forjada especialmente para dar cobertura a uma estrutura de poder que situa as mulheres muito abaixo dos homens em todas as áreas da convivência humana. É a essa estrutura de poder, e não apenas à ideologia que a acoberta, que o conceito de patriarcado diz respeito”. (SAFFIOTI, 2004, p. 136).

Como pode-se observar — para a surpresa de muitos —, o conceito de ideologia de gênero não é nada do que imaginamos e reproduzimos. E sim, de fato, o termo foi criado por uma feminista. Não há, mesmo assim, motivo lógico para ressignificação deste termo, nem por parte dos conservadores, nem por parte dos progressistas, já que para referir-se à ideologia de gênero é necessário, previamente, conhecer os conceitos separados tanto de ideologia quanto de gênero. Não há lógica possível em se utilizar esse termo quando referindo-se a “influenciar crianças a serem gays” “unir sanitários” ou até “obrigar crianças a serem transsexuais”. Não há lógica em nada disso, óbvio, mas muito menos no uso do termo para tais definições.

Aquele que discrimina ideologia de gênero como o suposto plano de influenciar crianças a práticas sexuais heterodoxas ou excluir a possibilidade de gêneros estão munidos de absurda má-fé ou de burrice assustadora. Ambos os casos deveriam nos envergonhar.

* Escritor e crítico literário ipatinguense. Tem dez livros publicados. E-mail: [email protected]

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Comentários

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Maria Aparecida Eloy

16 de janeiro, 2020 | 19:57

“Prefeita suas considerações sobre o assunto !”

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