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06 de janeiro, de 2020 | 16:16

Devemos ser intolerantes

Guilherme de Castro Resende *


“Ter tolerância para a injustiça e o horror que assola o outro, que nos poupa não é mais tolerância, e sim egoísmo e indiferença”


“Para se opor ao fanatismo, ao sectarismo, ao autoritarismo, tem-se o rigor da lei”


O grupo de humor “Porta dos Fundos”, em contrato com o serviço de streaming Netflix, produziu uma sátira a respeito de um episódio da vida de Jesus. De acordo com alguns dicionários, sátira é uma técnica artística que ridiculariza um determinado tema, de maneira que provoque reflexão ou mudança. Enfim, a obra, sendo artisticamente boa ou não, não passa disto: um filme.

Contudo, um indivíduo do Rio de Janeiro, hoje foragido da polícia, atacou, com outras pessoas, a sede do grupo humorístico. Atacou com coquetéis molotov. Dias após, o sujeito divulgou um vídeo pelo Youtube, chamando os humoristas de “bandidos” e pede “orações”! Vê-se, aqui, que religiosidade não é atestado de caráter. Em sua ficha, constam algumas infrações e investigações criminais por ameaça, agressão, inclusive contra mulher, e envolvimento com milícia.

Um dia depois do ato abjeto, um grupo autodenominado Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira reivindicou a autoria, dizendo em vídeo: “Reivindicamos a ação direta revolucionária que buscou justiçar os anseios de todo o povo brasileiro contra a atitude blasfema, burguesa e antipatriótica que o grupo de militantes marxistas culturais Porta dos Fundos tomou quando produziu seu especial de Natal”.

Muita verborragia obtusa pode ser evidenciada no texto acima, mas o espaço é limitado para discussão. Fiquemos, então, com a ideologia que professam: o integralismo. Este foi um movimento numeroso de extrema direita, que nasceu no Brasil por volta da década de 1930, durante a Era Vargas. As pessoas, nessa época, usavam uniformes verdes, com braçadeira com círculo branco, tendo a letra grega sigma como símbolo, e se cumprimentavam dizendo “anauê”, da língua tupi. Eles eram orgulhosamente fascistas, até o Eixo perder a guerra. Diante das atrocidades perpetradas no Holocausto, os integralistas se reinventaram, passaram a ser conservadores católicos. Contudo, é fato indiscutível que, entre 1932 e 1937, a Ação Integralista Brasileira (AIB) se definia como fascista.

Os mentores do movimento, como Plínio Salgado e o jurista Miguel Reale, professavam o fracasso da democracia liberal e tinham como solução a ideia de Mussolini de um Estado Corporativo, consequentemente, um Estado forte com um governo autoritário e uma sociedade militarizada. Ironicamente, foi de suas entranhas que saiu o seu declínio: ao produzirem o famoso Plano Cohen, um hipotético avanço comunista no país, Getúlio Vargas se apropriou dele e instalou o Estado Novo, declarando todos os partidos políticos, inclusive a AIB, ilegais. Quando perceberam o erro, tentaram um levante tímido e fracassado. Plínio Salgado passaria muitos anos no exílio em Portugal.

Agora, surge um grupo com um nome tão grande quanto medonho, Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira, que produziu um ataque terrorista em solo nacional. Para parafrasear um filósofo tão presente na boca desse povo, Karl Marx, a história se repete, primeiro como tragédia, depois, como farsa. O ato filmado contra a sede da produtora do “Porta dos Fundos” pode ser enquadrado na Lei Antiterrorismo – Lei 13.260 de 2016.

Embora internacionalmente não haja uma definição precisa sobre o que é um ato terrorista, o artigo 2º da citada lei aduz que “o terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.

Seu parágrafo primeiro declara, como ato terrorista, usar, transportar, portar consigo explosivos ou outros meios capazes de causar danos; além de atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa, o que condiz com o caso, pois a própria polícia indiciou o infeliz por tentativa de homicídio, já que um segurança no local quase fora atingido.

Quer discutir os valores do integralismo e do cristianismo, as características da família tradicional brasileira e da nação, as “evidências” do terraplanismo e do não aquecimento global, tudo bem, ainda se vive em uma democracia onde se tem constitucionalmente a liberdade de expressão. Mas querer apelar para a violência em algo tão pueril quanto uma obra de humor, mesmo que supostamente débil, deve ser absolutamente reprimido. Ser tolerante não é tolerar tudo; do contrário, essa não seria mais uma virtude. Ademais, aqueles que desejariam impedir os cientistas de trabalharem e os artistas de se exprimirem, seja em nome de Deus ou de um sistema de valor, não é a tolerância que lhes falta, mas sim a inteligência e o amor à verdade. Como símbolo do direito de livre expressão, a frase atribuída a Voltaire é exemplificativa para o momento: “eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”.

Em suma, ter tolerância para a injustiça e o horror que assola o outro, que nos poupa não é mais tolerância, e sim egoísmo e indiferença. Por isso, não se pode ter medo ou covardia de se dar o exato nome às coisas, seja o autor de esquerda ou de direita. Uma sociedade democrática que renuncia a defender a justiça e outros valores de um ataque intolerante e fatal está fadada à decadência, pois o ocorrido no Rio de Janeiro ameaça frontalmente a liberdade geral. Esse grupo recusou qualquer discussão lógica, colocou-se fora da lei, só respondendo à base da violência, sendo assim, a proteção deficiente da sociedade ou a tolerância ao grupo é uma incitação à atividade criminosa.

Não há inteligência sem liberdade de julgamento e de expressão, muito menos sociedade próspera sob o jugo de uma só ideologia; portanto, jogar coquetéis molotov em um estabelecimento, pelo simples fato de um vídeo satírico não compartilhar a sua “verdade”, é tentar subjugar a democracia e suas liberdades fundamentais. Para se opor ao fanatismo, ao sectarismo, ao autoritarismo, tem-se o rigor da lei. Sejamos intolerantes!

* Advogado do escritório Jayme Rezende Advogados Associados
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