21 de dezembro, de 2019 | 18:00

Meu afilhado acha que a Constituição nasceu em 1988

Guilherme de Castro Resende *

“Nossa Constituição de 1988 não é uma mera carta de intenções, mas resultado de uma organização sociopolítica antiga, combinado com princípios caros à humanidade e com programas e metas de nossa sociedade.”

Meu afilhado é estudante de direito. Como de comum, em todo evento de família ou que envolva uma rodinha de amigos, um estudante de direito é um típico escriba, doutor da lei. Nada como o tempo e, sinto dizer, um pouquinho de dor, para aplacar esse orgulho voraz.

Em uma de nossas prosas, ele me informou que nossa Constituição Federal de 1988 era totalmente inovadora, até porque o período anterior havia sido ditatorial; portanto, quanto ao seu modo de elaboração, ela vem a ser dogmática, contendo os valores então em voga nos finais dos anos 80. Eu truquei. Estava ciente de que os professores ensinam essa classificação nas escolas, mas o que ele fazia era apenas esboçar um conhecimento engolido sem análise crítica.

Perguntei ao meu garoto o que ele entendia por constitucionalismo. Ele me deu, em continuidade ao conhecimento formalmente adquirido e engolido, o conceito de J.J Gomes Canotilho, um jurista português: uma espécie de técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos. Bonito conceito, exatamente por dizer muito em poucas palavras. Parabéns, Professor Canotilho. Mas a segunda pergunta não seria tão mais fácil: qual é a origem do constitucionalismo brasileiro?

A Constituição brasileira não foi formada por valores do fim do século XX. Ela é um movimento anterior ao descobrimento. Na antiguidade clássica, entre o povo monoteísta hebreu, tivemos inicialmente uma influência judaico-cristã. Criou-se uma lei para todos, a Lei Mosaica; concedeu-se uma dignidade aos homens, a ideia de imago Dei, o homem à imagem e semelhança de Deus; e, com o Novo Testamento, veio a primária noção de igualdade. Karl Lowenstein, inclusive, chega a dizer que o primeiro controle de constitucionalidade da história foram os profetas hebreus, os quais fiscalizavam os atos dos governantes, segundo a lei do Senhor.

Além disso, a democracia e o autogoverno são valores, principalmente, gregos. O homem tornou-se nesse momento o centro do universo: antropocentrismo. O sofista Protágoras chegou a afirmar: o homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, e das coisas que não são, enquanto não são. Logo após, os romanos vieram com codificações escritas, inclusive com a Lex Regia, limitadora do poder real.

A Idade Média trouxe um movimento revolucionário muito interessante. Quem não conhece a história do rei inglês João Sem Terra? Os nobres ingleses empoderaram o Parlamento com a Carta Magna de 1215, trazendo princípios hoje essenciais ao nosso atual ordenamento jurídico, como o da proporcionalidade, o da legalidade tributária (no taxation without representation) e o da legalidade penal (the Law of the Land).

O constitucionalismo moderno foi rico em movimentos sociopolíticos. A Inglaterra legou-nos importantes instrumentos limitadores do poder real, como o Petition of Rights de 1628, o Habeas Corpus Act de 1679 e o Bill of Rights de 1689; enquanto a França realizava a sua famosa Revolução de 1789, estabelecendo normas jurídicas para a nova fase liberal, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e sua constituição de 1791. Os EUA importaram esses ideais, ao esboçar a primeira declaração moderna de direitos fundamentais, com a Declaração da Virgínia, e a primeira constituição moderna, em 1787.

Essa fase liberal foi imbuída de sentimentos antiestatais, com ampla defesa da liberdade e da propriedade privada. Ideias essas também vitais ao nosso constitucionalismo de 1988. Contudo, essa fase liberal levaria a uma preocupação com o lado social, com constituições mais responsáveis com o aspecto humano. Essas constituições com prestações positivas possuem como primeiros modelos a Mexicana de 1917 e a de Weimar, na Alemanha, de 1919.

Portanto, passamos por diversas fases, até chegarmos ao nosso constitucionalismo contemporâneo, pós II Guerra Mundial, onde a necessidade de se proteger a dignidade humana era premente, após horrível irracionalidade coletiva. Temos um Estado Constitucional de Direitos, onde a legalidade está ao lado do elemento ético. É a reaproximação do Direito com a Ética, eis o pós-positivismo filosófico. A nossa Constituição de 1988 não é uma mera carta de intenções, mas resultado de uma organização sociopolítica antiga, combinado com princípios caros à humanidade e com programas e metas de nossa sociedade.

Meu afilhado está apenas iniciando sua vida jurídica. Em nossa conversa, o que ele entendeu foi que a limitação de ideias autoritárias e de degradação da organização do Poder é fruto de uma longa luta humana. Assim, políticas atuais que tentam desvirtuar a nossa Carta Magna devem ser analisadas de modo muito crítico, porque o constitucionalismo não nasceu em 1988; afinal, como dizia Kant, o Estado não tem um fim em si mesmo, o seu fim é o homem.

* Advogado especialista em direito empresarial e tributário do Escritório Jayme Rezende Advogados Associados
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