27 de agosto, de 2019 | 16:00

A operação lava-jato e uma nova ordem jurídica no brasil

Hiltomar M. Oliveira *

"Por devido processo legal, entende-se o direito de o acusado usar de todos os recursos processuais até onde a lei o permitir"

"A instauração desta nova ordem jurídica tem sido denunciada e combatida com bravura por muitos juristas e advogados"

"Quando uma sociedade aceita sacrificar uma quota de sua liberdade, tão duramente conquistada, em prol de uma ilusória segurança, o direito seguirá seus passos"

O “Escândalo do Mensalão”, surgido em 2005, abalou a vida política e a ordem jurídica brasileiras de modo tão intenso que até hoje se sentem os desdobramentos de seus efeitos. Na época, foi considerado o maior caso de corrupção política desde o advento da Nova República, envolvendo políticos de muitos partidos, incluindo do próprio PT, então recém-chegado ao poder.

Imediatamente, o Supremo Tribunal Federal (STF) assumiu o julgamento do caso, invocando o instituto do foro privilegiado, uma vez que a maioria dos acusados estava em exercício de funções parlamentares ou compunham o alto escalão do governo. Para a relatoria foi designado o então Ministro Joaquim Barbosa.

O julgamento deste caso emblemático, que doravante ficaria conhecido como Ação Penal n° 470 (AP 470), nasceu e se desenrolou sob a singular égide da espetacularização midiática e televisiva do processo penal. Os jornais, as revistas e as redes de televisão entregaram-se à divulgação diária das notícias relativas ao caso. Em 2012, iniciou-se o julgamento definitivo, em que os acusados – em sua maioria políticos pertencentes ao PT e aos partidos que o apoiavam – foram condenados a penas variáveis.

Não faltaram vozes de juristas e de advogados que se levantaram contra o procedimento do ministro Joaquim Barbosa na condução do processo, com pesadas críticas às suas decisões interlocutórias e sentenças, principalmente no que diz respeito à qualidade das provas e ao emprego de princípios jurídicos estranhos ao direito penal brasileiro, como por exemplo, a teoria do fato consumado.

Mesmo sem ter chegado ao fim, o processo do Mensalão já deixara sementes que começavam a germinar... Na 13ª Vara da Justiça Federal da Quarta Região, em Curitiba, estava em andamento um inquérito para apuração de irregularidades nos contratos da Petrobras e que levava o nome de “Operação Lava-Jato”. Rapidamente, descobriram-se as ramificações gigantescas e inusitadas de um esquema criminoso muito mais amplo e ousado do aquele investigado e julgado no processo do Mensalão. Hoje, ela pode ser considerada uma linha de continuidade da AP 470 e com um mérito muito maior, porque já domina o imaginário popular na figura de uma vencedora da luta contra a corrupção no país e o ex-juiz Sérgio Moro (hoje Ministro da Justiça) desponta como herói nacional.

Mas outro crédito ainda resta para lhe ser atribuído: ela é a “fiadora moral” de uma nova ordem jurídica que, inquestionavelmente, se instalou no Brasil. Por enquanto, ainda se limita ao processo penal e seu protagonismo conta com poucos adeptos no sistema judiciário, mas nada indica que influência irá se reduzir em curto prazo. Ao contrário, as análises mais imparciais e objetivas levam a crer que a Operação Lava-Jato veio para ficar e não é moda passageira. O melhor exemplo pode ser buscado nas decisões e nas hesitações do Supremo Tribunal Federal(STF), nas falas e nos votos de ministros do Superior Tribunal de Justiça(STJ) que, via de regra, vêm confirmando as sentenças prolatadas pelo TRF da Quarta Região.

Eis aqui, resumidamente, as principais características dessa nova ordem jurídica pós-Operação Lava-Jato: I) Encampação da Tradição Utilitarista do Direito. Por ela se permite a concentração de poderes investigativos e acusativos no Judiciário. Ou seja, o juiz da causa torna-se, ao mesmo tempo, acusador e julgador, atua sem requerimento das partes, investigando e julgando de acordo com as provas cuja produção foi determinada por ele mesmo, tornando-se, assim, instrumento de repressão.

II) Confusão entre o Juiz político e o Juiz policial. O juiz pode agir e fundamentar decisões com base não somente nas suas convicções técnicas (advindas da análise das provas colhidas no processo legal), mas como também em razões de ordem política e religiosa.

III) Processo Penal do Espetáculo. O espetáculo domina a condução do processo criminal, que se torna um fim em si mesmo, dirigido pela figura do juiz inquisidor. A este incumbe anunciar a próxima atração – sempre guardada em segredo – de forma a manter a fixação da atenção da platéia. No processo penal do espetáculo a democracia importa menos, donde, como conseqüência lógica, facilmente se conclui que ele se transformou em “mercadoria”, na medida em que a tão almejada busca da verdade real pelo juiz diretor do processo cede lugar à confirmação do espetáculo como ato legítimo do julgamento.

IV) Revogação do Princípio do Juiz Natural. Uma singular característica da nova ordem jurídica imposta pela Operação Lava-Jato trata-se, exatamente, da relativização de um princípio jurídico tão caro e inestimável ao direito processual penal: o princípio do juiz natural. Por ele, o juiz competente para julgar uma ação penal deve ser aquele do lugar do cometimento da infração penal, à qual houver de ser cominada a pena mais grave (Diz o art. n° 78 do Código de Processo Penal que tendo o crime ocorrido em mais de um local “prevalecerá a autoridade do lugar em que tiver ocorrido o maior número de infrações, se as respectivas penas forem de igual gravidade”.

V) Adoção de Motivação Ética-Religiosa Pessoal do Julgado-Inquiridor - Diz respeito à singular e incompreensível confusão da motivação ética-religiosa com a ciência do direito. Assim, em um texto revelador da intenção da construção de uma nova ordem jurídica no Brasil, o juiz Sérgio Moro expõe, abertamente, suas convicções sobre como se deveria operar o combate à corrupção, elegendo um paradigma na conhecida “Operação Mãos Limpas”, que se desenrolou na Itália na década de 70. Não por mera coincidência, o título das duas operações tem significações semelhantes, e, num primeiro momento, há que se destacar o deslocamento da atividade jurídica em que se dá proeminência e publicidade “alucinante” às fases iniciais de investigação e ao oferecimento da denúncia, numa inversão de valores que vai de encontro aos procedimentos vigentes no processo penal clássico. Por outro lado, o procurador da força-tarefa da Lava-Jato, Deltan Dallagnol, em depoimentos e palestras, tem falado em “cruzada contra a corrupção”, e tachado os acusados de corrupção de “inimigos da pátria e de Deus”.

VI) Minimização da Licitude das Provas - Uma característica marcante dessa nova ordem jurídica é a relativização do princípio da proibição de obtenção de provas ilícitas, o no art. 5º, inciso LVI da Constituição Federal de 1988. Aqui, de fato, vai-se de encontro ao próprio conceito de garantia fundamental, porquanto ele, enquanto princípio, não pode ser relativizado; ou ele se aplica ou não se aplica! Até o presente, pelo que se tornou público, a Operação Lava-Jato produziu milhares de escutas telefônicas, mas a ilegalidade de algumas delas é flagrante. Basta um exemplo: aquele do famoso “grampo” telefônico da conversa entre a então presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no qual ela informava sobre o procedimento a ser seguindo para o caso de ser empossado como ministro de Estado. Como já é de conhecimento público, a gravação da conversa telefônica se deu após o limite temporal fixado na decisão que a concedeu e, além do mais, a justificativa do Juiz Sérgio Moro ao STF e ao CNJ não foi capaz de eximi-lo de culpa por cometimento de infração funcional. Especialistas ouvidos na época chegaram a dizer que os relatórios foram alterados, fazendo menção a falhas técnicas que não foram detectadas de imediato.

VII) O Uso de “Meios de Pressão” para Obtenção de Confissão ou de Delação (Premiada ou não) - O combate à corrupção é visto pelo Juiz Sérgio Moro como uma “operação de guerra” e, daí, segundo ele, justifica-se, o uso de meios de pressão para forçar os indiciados presos a confessar ou colaborar, lançando mão do duvidoso instituto da delação premiada. Em um artigo intitulado “Considerações sobre Mani Pulitti” (“Mãos limpas” em italiano, referindo-se à operação de mesmo nome na Itália), o Juiz Sérgio Moro escreveu textualmente: “A estratégia de ação adotada pelos magistrados incentiva os investigados a colaborar com a Justiça. A estratégia desde o início submete os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e levantado a perspectiva de permanência na prisão pelo menos no período de custódia preventiva no caso da manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata em caso de uma confissão”.

Ademais, a nova ordem jurídica busca freneticamente a relativização de direitos e garantias constitucionais, dentre os quais cabe mencionar o “habeas corpus” e o devido processo legal. O “habeas corpus” é um recurso que permite a soltura imediata de um preso por um tribunal superior, antes de a condenação transitar em julgado. Por devido processo legal, entende-se o direito de o acusado usar de todos os recursos processuais até onde a lei o permitir. Assim, recorrendo ao acima citado trecho do Juiz Sergio Moro, a imediata soltura do acusado via “habeas corpus”, estará, doravante, condicionada à decisão de ele “confessar”, e o tempo de permanência preventivamente na prisão, ao assim chamado “poder discricionário do juiz”, o qual se insere, veladamente, no termo “estratégia de ação” utilizado pelo Juiz Moro.

A instauração desta nova ordem jurídica tem sido denunciada e combatida com bravura por muitos juristas e advogados, principalmente por aqueles que patrocinaram a defesa dos acusados, indiciados e condenados nos processos do “Mensalão” e da “Operação Lava-Jato”. Infelizmente se circunscreveram ao âmbito dos tribunais, das publicações especializadas, e não lograram obter a ampla divulgação pelos meios de comunicação, os quais, como já dito, estão engajados em sua maioria na defesa dessa nova ordem jurídica.

Uma ordem jurídica rege, em cada momento, a vida e as instituições de todas as classes sociais dentro de uma determinada nação e sua mudança começa lentamente, como quando se pingam gotas de corante em um recipiente de água cristalina. No princípio, difícil perceber a diferença, mas na medida em que o tempo passa e a agitada dinâmica da vida social se acelera, conclui-se que é impossível voltar à coloração original. Quando uma sociedade aceita sacrificar uma quota de sua liberdade, tão duramente conquistada, em prol de uma ilusória segurança, o direito seguirá seus passos, porque ele é humano e mortal como os próprios homens.

* Advogado, professor de Ciência Política e Teoria Geral do Estado, membro da Seccional do Vale do Aço do IAMG)
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