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14 de agosto, de 2019 | 16:20

Trabalho e loucura, uma ruptura com a cultura eugênica

Maria Inês Vasconcelos *

O preconceito em torno da doença mental é milenar, remonta à antiguidade grega, onde a loucura estava associada à voz dos deuses, eis que, naquela época, as explicações para comportamentos tidos como loucos tinham sempre caráter mitológico e os deuses é que decidiam tudo.

Na Idade Média, a mente era um conceito filosófico, moral. A filosofia de Santo Agostinho havia consolidado o catolicismo na Europa e influenciado muitos outros pensadores. O pecado era tudo que não se conformava com o código de comportamento traçado pela Igreja. Foi a época das bruxas. E a loucura significava ser possuído pelo demônio, o que era um rótulo mortal, porque a fogueira ardia e era impiedosa.

Avançando no tempo, chegamos a 1717. De forma tragicômica e folclórica, marcada para sempre no imaginário luso-brasileiro, temos a imagem de Dona Maria, “A Louca”, que foi rainha de Portugal e Algarves de 1777 até 1815. Talvez bipolar ou esquizofrênica, que hoje se resolve com medicação, Dona Maria recebeu um tratamento bizarro, usou colete de forças, vivia em isolamento, amarrada, e era submetida a banhos diários em água gelada nos momentos de crise. O médico da época diagnosticou “aflição melancólica que degenerou em insanidade e, algumas vezes, em delírio total”.

A vida da rainha, sabemos, não foi nada fácil. Enfrentou a morte do marido, em 1786; dois anos depois, outra morte, a do filho mais velho, o que já é suficiente para uma baita depressão, imagina se juntar a isso o medo da morte. Afinal, Dª Maria testemunhou a execução de Maria Antonieta e todo o seu contexto. Dá para adoecer mesmo. Entretanto, mesmo com avanços políticos e econômicos identificados durante seu reinado, a marca da loucura ficou impregnada na rainha. Quando a família real fugiu para o Brasil, em 27 de novembro de 1807, ela disse: “Não conduzam tão depressa! As pessoas vão julgar que estamos a fugir”.

Contudo, os avanços da ciência, o nascimento da psiquiatria e das humanidades, propiciaram um novo estágio e a modificação no enfrentamento do tema, provocando a ruptura com a fase enigmática e preconceituosa até chegarmos à genética.

Em 1865, Gregor Mendel, botânico e monge agostiniano que vivia em um mosteiro da Áustria, propôs um modelo de herança genética a partir de análises matemáticas e dados coletados em pesquisas realizadas com ervilhas. Ele observou que, ao cruzar ervilhas de casca enrugada com as de casaca lisa, nasceriam brotos com ambas as características.

Passadas cinco décadas, em 1916, Madison Grant, um eugenista do Museu Americano de História Natural, usou os estudos de Mendel para advertir: “O cruzamento entre um branco e um índio faz um índio, entre um branco e um negro faz um negro, entre um branco e um hindu faz um hindu, entre qualquer raça europeia e um judeu faz um judeu”. Com esse pensamento, Grant lançou as bases para a maior desgraça mundial, o holocausto.

Para Hitler e seus discípulos eugenistas, o nazismo traria um bem para a sociedade, sendo o extermínio de milhares de inocentes um fato inserido e justificado pelo desejo de construir um mundo melhor. Lobotomizados por essa cultura eugênica e macabra, médicos como o carrasco Josef Mengele se aventuraram em grandes perversidades.

Mengele utilizava doentes mentais, gêmeos, anões e deficientes físicos como cobaias de experimentos macabros no pavilhão batizado de ‘zoológico’. Suas pesquisas nada tinham de cunho científico, eram impiedosas e tão desumanas que chegaram, realmente, à beira da loucura. O psicopata sádico testava os limites do ser humano ao queimá-los vivos, fazer amputações desnecessárias e injetar cimento líquido no útero das prisioneiras para avaliar os efeitos da esterilização em massa. Isso, sim, é loucura.

Os eugenistas viram na genética o argumento para justificar o racismo, o preconceito e a segregação. Levaram o estudo de Mendel ao pé da letra, considerando a “casca enrugada da ervilha” como uma degeneração. Porém, sabemos que essa casca enrugada pode ser alguém completamente normal, uma pessoa que não se parece com a gente. Ser diferente não é ser degenerado.

Mas ainda há resquício dessa cultura eugênica nas relações interpessoais, sobretudo no trabalho. Para nós que enfrentamos o fenômeno ambiente-trabalho-adoecimento, a doença mental decorre de fatores não genéticos.
Christophe  Dejours, psiquiatra especialista em medicina do trabalho e pai da escola dejouriana, afirma que o trabalho realmente adoece e pode enlouquecer. Filósofos e sociólogos famosos, como o brasileiro Wanderley Codo e o polonês Zygmunt Bauman, reconhecem que o trabalho pode e está contribuindo para o surgimento ou agravamento das doenças mentais, quase sempre de origem multifatoriais.

As contribuições e o olhar multicientífico sobre o tema impedem que a discussão fique presa unicamente na hereditariedade. A doença mental do trabalhador só pode ser estudada numa plataforma social, econômica e humana. Não há mais espaço para estagnar na genética. É preciso declinar deste lugar. O trabalho causa, sim, doença mental.

Portanto, a matiz sempre eugênica, preconceituosa e exclusiva, de achar que só a genética adoece o trabalhador, não pode ser reconhecida sem que se investigue realmente se os agentes etiológicos ou fatores de risco de natureza ocupacional, como o ritmo de trabalho penoso (CID10 Z56.3) e outras dificuldades físicas e mentais relacionadas ao ofício (CID10 Z56.6) tenham contribuído para o surgimento ou agravamento da doença.

Não há mais lugar para ervilhas, cascas enrugadas e perversidades tipo mengelianas. A genética é parte da explicação de alguns fenômenos, mas não é a única justificativa. Qualquer outro olhar é tão perverso como as fogueiras medievais. Não há mais lugar nenhum para qualquer outro holocausto na Terra.
 
* Advogada trabalhista, especialista em Direito do Trabalho, professora universitária e escritora.
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