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26 de julho, de 2019 | 15:15

Louvor e fúria

Vinícius Siman*

Acabou essa história de grandes gênios da literatura universal. Um escritor não é decente até ter sua biblioteca de clássicos. Não habitam mais entre nós esses semideuses. Um escritor contemporâneo tem, por obrigação, de ser um historiador da literatura. Seus textos literários devem recorrer permanentemente a referências aos grandes mestres. O trabalho útil do escritor nos dias de hoje é fazer links com escritas mais importantes que as dele. Isso desde Joyce.

Não deve haver algo mais prazeroso a um humano que abrir a Ilíada num ritual muito romântico, mas, sobretudo, religioso, e visitar tanta imponência e incontestabilidade. Lê-se a Ilíada, a Odisseia, como se se lesse a Bíblia Sagrada: contido, num solilóquio repleto de sacramentos. O esplêndido em Homero e outros deuses e semideuses da literatura é que são inquestionáveis. Qualquer um que questione sua supremacia carece de inteligência (e digo à moda do clássico eufemismo “vossa-excelência-está-faltando-com-a-verdade”). Homero é uma verdade absoluta; você pode ter outros gostos, mas jamais pode negar que apenas uma coisa realmente importa: Homero.

A Ilíada tem tanta imponência estética, literária. Um livro colossal! Os versos formulando descrições minuciosas (que nos afogam em constante libido) sobre o povo aquivo são de assustar qualquer um. Homero (ou — como diria Josué da Silva Brito — os 30 homens que foram ele) deu-nos um presente de grego. Esse livro é um muro sólido, intransponível. E, a bem da verdade, as palavras definitivas de Pessoa ecoam: “Deve haver, no menor poema de um poeta, qualquer coisa por onde se nota que existiu Homero”.

Este texto, por exemplo, é a única escrita possível. Afinal, a escrita só é útil quando, além de exercer determinada função social — digo em relação tanto ao louvor da nossa barbárie quanto a tentativas doutrinadoras de plurissuperação através da civilização (como Nietzsche em “Assim falou Zaratustra”: o Übermensch), e mais que essa função social, também reverencia seus ícones.

Qualquer texto escrito neste século, deveríamos fazê-lo à moda duma hecatombe, e cumprir isso com a rigidez com que os aqueus imolavam aos deuses do Olimpo e com a mesma importância que Kant dava à Lei. Solenidade — sua falta é nossa maior falha, nossa, dos homens e mulheres de letras, a quem é dado, vez em quando, o poder de definir costumes, como também o de derrubá-los. Deveríamos estabelecer mandamentos, até: amar Homero sobre todas as coisas, não dizer seu santo nome em vão, etc. Ou substituí-los, todos os dez, por um, apenas: só escreva em caso de urgência, e, em caso de urgência, sempre escreva conscientemente sobre Homero.

* Escritor e crítico literário ipatinguense. Tem dez livros publicados. E-mail: [email protected]
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