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08 de março, de 2019 | 16:45

Flávia em carnavais

Vinícius Siman*

Minha última noite em Montevidéu foi noite de carnaval. Eu estava na Calle Ejido com Isla de Flores, e era nesta que passava o desfile das chamadas. Fui dar uma olhada; foi gostoso ser tomado pelos tambores. Depois de dois meses no Uruguai, finalmente retornaria à minha terra — e aquilo era uma entrada, preparando meu coração pro prato principal: Brasil, Minas. Mal fiquei um minuto e começou a chover. Voltei pra casa. Minha última noite em Montevidéu foi de carnaval e chuva.

Flávia Frazão já me pedia há muito tempo pra ler Quase 40 - Quase proibido, mas eu não estava no clima. Retornei ao Brasil. Foi num domingo de carnaval que, depois de chegar do Parque Ipanema, tirei todas as minhas roupas, liguei o ventilador, sentei-me no chão, botei Roberto Carlos pra tocar, abri uma cerveja (o maço de Dunhill ao alcance) e peguei os originais de Quase 40. Foi rabiscando a cópia com marca-texto e anotações, interrompendo hora ou outra a leitura pra cantar com Roberto Carlos, meio embriagado, que me senti verdadeiramente no Brasil, em Minas, em Ipatinga. Flávia tem dessas coisas, de conectar a gente com o nosso lugar-mãe, e talvez por isso não o li enquanto estive em Montevidéu, porque seria extremamente doloroso desejar odiar o Brasil mais de perto.

O prefácio de Rubem Leite é uma obra literária por si só, sempre lúcido e ácido, Rubem abre com genialidade essa quase epopeia pós-balzaquiana de Flávia. No poema “Desculpa”, Flávia mostra-se quase Clarice, só faltou comer a barata em seu complexo de G.H., e logo depois, em “Exílio”, leio minha verdade, a verdade da autora e de muitos de nós: “não queria, mas ficou exilada/ em seu próprio país”. Em “Desmatéria”, vi uma definição pra saudade que me fez tirar Roberto Carlos e colocar “Pedaço de mim” pra tocar. Essas dores (de Chico e Flávia) mexem comigo e me atingem diretamente.

Confessando que queria escrever um romance, a essencialmente poeta assume sua necessidade político-poética. E também sua sede. “Igual mesmice” me matou. Várias obviedades bonitas de se ler, como “a lua míngua” “a flor desabrocha” “a chuva cai”, seguidas do óbvio assombroso: “operário morreu sufocado” “aposentadoria é mito”, etc., até que corta mais uma vez a linha da narrativa e retoma a bucólica contemplação: a vivência de um dia jamais se repete.

“Metapoesia” é uma sentença! Ler os “Diálogos sem sentido”, diálogos que Flávia e eu tivemos, me trouxe à cabeça perturbações. Ainda dói. Depois, a viagem de Flávia ao Recife. Tem beleza e dor em tudo o que ela escreve. A enfadonha política brasileira não tira férias. “A poesia me salva”, escreveu em “Salvação”, e me fez ter um orgasmo lírico. Quase no fim do livro, “Solidão” é um ponto de partida.

“Na cidade empoeirada/ a moça permanece imprópria”. Foi num quente domingo de carnaval que li "Quase 40", pelado, sentado no chão do meu quarto, fumando e bebendo Brahma, ao som de Roberto Carlos. Tudo isso pareceria loucura pra quem não conhecesse o Brasil e Flávia.

* Escritor e crítico literário. Tem dez livros publicados.
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