02 de março, de 2019 | 15:00

Negociando com o ditador

Arnaldo Francisco Cardoso *

"A ditadura hereditária lá em vigor já se arrasta por sete décadas"
A reunião de cúpula entre Trump e Kim Jong-un em Hanói (Vietnã) nestes 27 e 28 de fevereiro, oito meses depois do histórico encontro entre os dois governantes em Singapura, que abriu um processo de negociação depois de mais de 60 anos de tensão entre os dois países, ao mesmo tempo em que suscita indagações produz uma série de evidências quanto aos fatores e motivações que determinam a ação em política internacional e de como se processam as relações internacionais.

Vale aqui observar que a reunião de Hanói ocorre no momento em que a ameaça de uma guerra paira sobre a América do Sul com o endurecimento de posição do governo Trump contra o governo de Nicolas Maduro, na Venezuela. A defesa de uma intervenção militar no país sul-americano se sustenta na denúncia de que o governo de Maduro se converteu numa ditadura, uma vez que a eleição ocorrida em maio de 2018, que lhe conferiu um segundo mandato, é contestada pela oposição reunida na Assembleia Nacional e acusada de irregularidades por observadores internacionais. A polarização política na Venezuela somada à perda de reconhecimento internacional do governo de Maduro e as seguidas sanções econômicas aplicadas sobre o país, agravaram sobremaneira a longa crise econômica e política que abate o local e que já provocou a saída de mais de 2 milhões de venezuelanos do país.

Mas tratando-se de ditaduras, o regime de King Jong-un na Coreia do Norte já deu incontáveis demonstrações de sua rigidez e crueldade, inclusive com execuções sumárias de opositores e assassinato por envenenamento de dissidentes. A ditadura hereditária lá em vigor já se arrasta por sete décadas, sendo o atual governante filho do ditador Kim Jong-il, que governou o país de 1994 à 2011, e neto de Kim Il-sung, que governou o país por décadas, da sua fundação até 1994.

Entretanto, na reunião de Hanói, Trump chamou Kim Jong-un de "grande líder" e afirmou que o país terá um "futuro tremendo" para o qual se ofereceu a ajudar.

Ao cidadão comum, diante do noticiário que cobre esses eventos internacionais, uma vez disposto a compreendê-los, é natural que indague: afinal, por que ditadores recebem tratamentos tão diferentes?
Mais acessível aos especialistas, há uma vasta literatura especializada que oferece por meio de diferentes abordagens, respostas para tal indagação.

Um caminho que ajuda a respondê-la, além do reconhecimento das especificidades de cada contexto, se faz através da identificação de recursos de poder acumulados pelos diferentes países e as estratégias adotadas por seus governos para utilizá-los na construção de suas relações exteriores.

Nos últimos anos, a Coreia do Norte ocupou com preocupante frequência o noticiário internacional em função da realização de testes militares e anúncios de avanços tecnológicos em defesa militar, inclusive com significativas conquistas no desenvolvimento de um programa nuclear condenado internacionalmente. O jovem e histriônico ditador norte-coreano deu mostras de determinação e ousadia (seria irresponsabilidade?) na condução de uma política externa de enfrentamento e ameaças, orientada por um realismo na afirmação de seus interesses nacionais. Ao custo de submeter a maioria de sua população a pobreza e privações, afirmou considerável autonomia na tomada de decisão sobre a política do país.

Kim Jong-un praticou a política de dissuasão, mantendo mísseis apontados para capitais de países vizinhos, aliados dos EUA e afirmando repetidamente sua disposição e capacidade de destruição. Os EUA, por sua vez, ainda mantêm efetivo de 28.500 soldados na vizinha Coreia do Sul, além de equipamentos, e manifesta disposição para reagir com força a qualquer ação contra si e seus aliados.

Por essa abordagem, cabe lembrar a avaliação crítica de Martin Wight em seu livro A Política do Poder quando assevera que "[...] a política internacional ainda é a política do poder. Toda potência tem um interesse maior do que o bem-estar social; ela acredita que o bem-estar social depende desse interesse e é em nome dele que, em última instância, o bem-estar é sacrificado – esse interesse é a própria manutenção do poder".

Desta segunda reunião de negociação entre EUA e Coreia do Norte, é justo que se deseje sucesso na reversão das animosidades e redução da real ameaça de uma guerra que certamente afetaria negativamente todo o mundo. Espera-se, portanto, que as promessas feitas na primeira reunião, oito meses atrás, passem a ter maior efetividade, pois pouco se realizou daquilo que foi acordado. Deseja-se também que, a despeito da vaidade conhecida dos dois protagonistas, a reunião não tenha apenas a motivação de satisfazer suas audiências domésticas em seus projetos de manutenção de seus postos, lembrando que no próximo ano ocorrerá eleição presidencial nos EUA e o atual ocupante da Casa Branca sofre com queda de popularidade e baixo índice de realização das promessas feitas na campanha anterior que o levou ao poder. Nesse contexto, é conhecida a tática de fazer da "política externa" uma vitrine para o público interno.

Resta ainda desejar que, no espaço mais imediato de influência dos EUA a hipocrisia tão frequente na defesa vazia de democracias, não seja mais uma vez utilizada para promover guerras, apoiadas inclusive por governantes que publicamente fazem elogios a seus ditadores preferidos.

* Pesquisador e professor nas áreas de Comércio Exterior e Relações Internacionais da Universidade Presbiteriana Mackenzie Alphaville.

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