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15 de fevereiro, de 2019 | 15:45

Mariana, Doce, Brumadinho, Paraopeba: Vale ignora tragédias anunciadas e acredita na impunidade

Claudio B. Guerra *

O trauma resultante continua a produzir efeitos profundos na subjetividade e no emocional”

“O modelo de mineração que o Brasil adotou é um mal. E não é necessário”

“Geraram um tsunami de lama sobre o vale do Paraopeba e sobre centenas famílias, grande parte delas de seus próprios funcionários”

“O próprio governador de Minas passou a chamar uma tragédia com 320 mortes de incidente”

A tragédia da Vale, em Brumadinho, não é um evento com começo e fim definido. Um tsunami de lama devastou o córrego do Feijão, matas ciliares, a biodiversidade, os solos, e alvejou mortalmente o rio Paraopeba, que deverá ficar algumas décadas no CTI. Seus impactos negativos persistem e continuarão a gerar danos econômicos, sociais, ambientais e culturais na população e no meio ambiente regional.

Além disso, o tsunami matou mais de 300 pessoas e provocou a paralisação abrupta das atividades econômicas e também a ruptura da normalidade da vida de milhares de pessoas na região atingida, o que causou uma brutal desterritorialização. O trauma resultante continua a produzir efeitos profundos na subjetividade e no emocional dos indivíduos e famílias, que além de chorar as mortes de centenas de entes queridos sofreram um violento desenraizamento. Inúmeras delas, como pequenos agricultores, perderam tudo: a casa, bens materiais, produção agrícola e seu modo de vida, sua história pessoal e também amigos e parentes: uma situação de dor cotidiana, lenta e desgastante.

A dura realidade no córrego do Feijão hoje é difícil de ser descrever. O cheiro de morte no ar e a dor latente nas pessoas criou um cenário de vulnerabilidade e angústia, agravados pela ausência de atenção e informações concretas. Os atingidos estão completamente abandonados à própria sorte. A incerteza é uma situação insustentável, pois só cria mais ansiedade e sofrimento em pessoas já abaladas pela tragédia. A continuidade dessa situação tem reflexos negativos na saúde e os quadros de depressão já se tornaram comuns. A fase da identificação dos corpos, por exemplo, é extremamente lenta e sofrida, com as idas e vindas ao IML, em Belo Horizonte.

A estratégia de doações, em dinheiro, chamada de ajuda humanitária imediata, tem seus efeitos positivos, mas não consegue esconder a falta de pró-atividade e de compromisso da Vale com os atingidos. É compreensível, mas merece registro, o fato que o pessoal da Vale envolvido não tem experiência em situações de emergência, como também sua direção. Percebe-se facilmente seu despreparo para lidar com uma tragédia desta magnitude. O esforço e a boa vontade são inquestionáveis, mas os erros são elementares, como por exemplo, bloquear o direito de ir e vir em algumas estradas rurais, não providenciar o fornecimento de água para consumo humano e animal em comunidades rurais. Exatamente a mesma situação ocorreu com a Samarco, em Mariana: o pessoal de campo e seus principais dirigentes ficaram em “estado de choque” durante os primeiros dias e o mais grave: ficou evidenciado que o plano de emergência da empresa era simplesmente uma farsa, um documento frágil, elaborado para se conseguir a “licença abreviada”.

Esta tragédia tem causas já conhecidas, como também os nomes de seus responsáveis: autores humanos, com CPF e autor empresarial, com CNPJ. Tem também autor coadjuvante, o Estado, por meio da Semad. A Vale é hoje uma empresa desmoralizada frente a opinião pública, pois atuou dentro de uma lógica perversa: sabia do risco iminente de rompimento da barragem e não tomou a decisão de evacuar a população. A arrogância e o cinismo da empresa ficaram explícitos em 14 de fevereiro, quando em audiência no Congresso Nacional, o presidente da empresa disse que ela é “joia brasileira e não pode ser condenada por um acidente”. Disse também que a Vale arcará com todas as despesas e indenizações aos atingidos. Porém, neste mesmo dia, à tarde, seus advogados, terminam a 2ª reunião com o Ministério Público, no Fórum de Belo Horizonte, e decidem não assinar nenhum acordo.

O descrito acima só reforça o argumento do professor Bruno Milanez, da UFJF, segundo o qual “a visão de mundo e a concepção de sociedade dos empresários do setor mineral no Brasil justificam tudo, já que eles são obcecados por dinheiro. O modelo de mineração que o Brasil adotou é um mal. E não é necessário".

Repetindo erros de Mariana e Rio Doce - As primeiras informações e conclusões do inquérito do MP e da Polícia Federal dão conta que a Vale sabia de tudo, provavelmente acreditando que o “benefício” do desleixo é maior que o custo da precaução, sua direção simplesmente deixou as coisas ocorrerem. Esta mesma prática aconteceu antes do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana. É inaceitável como o descaso matou 320 pessoas, mas ele mesmo, e seus primos, a omissão, a falta de respeito, a ganância por mais lucro e a certeza de impunidade não morrem nunca. Mariana e o rio Doce estão aí para provar isso.

O paradoxal é que o processo de flexibilização das regras do licenciamento ambiental em Minas Gerais se iniciou três semanas depois da tragédia de Mariana. O “licenciamento abreviado”(LAC1) usado pela Vale em Brumadinho foi criado em dezembro de 2017, por uma decisão ratificada pelo Conselho de Política Ambiental do Estado de Minas Gerais (Copam). Aqui, destaca-se o trabalho incansável do Secretário Germano Vieira. O atual dirigente da Semad foi um dos impulsionadores da reformulação (facilitação) das normas ambientais e, para isso, contou com o apoio do setor privado, sob o argumento de que iria “dar mais agilidade ao processo de licenciamento ambiental no Estado”.
Esse é um exemplo em que o Estado, ao invés de implementar políticas públicas que utilizem mecanismos regulatórios para proteger o meio ambiente para esta e as próximas gerações, desvirtua-se de sua função de gestor do interesse público e passa a agir, sorrateiramente, na defesa do interesse privado.

A prática predatória da Vale e seu discurso falso de sustentabilidade provocaram a tragédia com a maior perda de vidas humanas de todos os tempos em Minas Gerais, geraram um tsunami de lama sobre o vale do Paraopeba e sobre centenas famílias, grande parte delas de seus próprios funcionários. Se houvesse um mínimo de caráter e decência na classe dirigente da Vale, toda sua diretoria executiva seria demitida. Agora a prioridade é “minimizar os efeitos deste acidente” e para isto a Vale vai investir em comunicação social, gerenciar a crise e trabalhar muito para seu autossalvamento. Suas práticas nós conhecemos. O que podemos esperar da Vale?

Um aspecto surreal da dura realidade enfrentada pela população de Brumadinho hoje é o fato da Vale, a causadora de toda esta situação de horror, acompanhar a elaboração e controle da lista de desaparecidos e realizar os cadastros para recebimento de doações em dinheiro. Diante de tal situação, como a Vale pode ficar à frente dos serviços relacionados a assistência dos atingidos? Como o cidadão atingido vai se sentir sendo controlado e ajudado pelo seu algoz? Será que, quando da realização do cadastro nas instalações da Vale, os atingidos sofrerão a humilhação, ocorrida em Mariana, de serem chamados de ‘beneficiários’? A Vale, que até hoje não pediu desculpas públicas pelo crime cometido, não teria de pedir uma licença social à população de Brumadinho, para trabalhar com os atingidos?

Na gestão do processo de recuperação das vidas das pessoas e do meio ambiente devastado algumas prioridades precisam ser definidas, sempre tomando o cuidado para não se repetir os inúmeros erros cometidos em Mariana e região do rio Doce: Criar um comitê gestor da tragédia de Brumadinho, com a participação efetiva dos atingidos, da prefeitura, Ministério Público e Vale. Esse comitê criaria mecanismos para garantir a transparência e a participação dos representantes dos atingidos e do governo local na recuperação das vidas e do meio ambiente. Essa diretriz é crucial, tendo em vista que muitos efeitos do desastre estão em curso e seus desdobramentos ainda são incertos. Após a fase de comoção geral, um risco a ser enfrentado é a acomodação dos fatos e depois o esquecimento da tragédia.

Custear a contratação de entidade independente, idônea e reconhecidamente capacitada que prestará assessoria técnica independente às pessoas atingidas. Nossa sugestão é de que esta entidade não seja a Fundação Renova, pois sua experiência de três anos em Mariana e região do rio Doce mostrou resultados frustrantes. Além de a Renova não ter credibilidade junto à população atingida (o processo das indenizações das famílias é maquiavélico), a lama continua no fundo do rio Doce, a pressão sobre as prefeituras dos 39 municípios atingidos para aceitarem suas condições é enorme, os moradores de Bento Rodrigues, Paracatu e Gesteira vão completar quatro anos sem casa, e pelo menos quatro mil pessoas não tiveram suas vidas retornadas ao normal. Além disso, a Samarco (Vale/BHP) não pagou nenhuma das 38 multas, imputadas por diversos órgãos públicos. A Renova é uma alternativa muito boa para a Vale e muito ruim para a população atingida de Brumadinho.

Para o pessoal que vai trabalhar diretamente com os atingidos exige-se o mínimo de conhecimento da realidade, experiência e habilidade em lidar com situações de conflitos. Neste momento delicadíssimo, é importante ouvir os atingidos, entender sua situação e também valorizar seu saber e suas percepções. Estas são algumas razões que reforçam nossa posição de sugerir o veto à participação da Renova em Brumadinho.

“Fazer o que deve ser feito. Esse é o nosso compromisso”. A Samarco e Renova trabalharam com este slogan, após o rompimento da barragem, em Mariana, tentando passar a ideia que sua prática junto à população atingida era de apoio e solidariedade em todos os sentidos. Hoje, o filme velho se repete: Verbas milionárias da Vale estão direcionadas para publicidade nas maiores redes de comunicação do país, com a estratégia de “naturalizar” a tragédia, definindo-a como um “acidente” e aliviando a culpa da Vale. O próprio governador de Minas passou a chamar uma tragédia com 320 mortes de “incidente”, como faria uma velha raposa política da década de 1940, quando foi criada a Companhia Vale do Rio Doce.

Finalmente, cabe lembrar episódio recente veiculado pela imprensa em que a irresponsabilidade da Vale ficou clara, mais uma vez. Mesmo depois de ter negada a declaração de condição de estabilidade à estrutura da barragem sul-superior na mina de Gongo Soco, por sua empresa de consultoria Walm, a Vale não tomou providências e nem contatou o Sistema de Informação Segurança de Barragens, como era sua obrigação. A ANM cobrou providências da Vale e somente assim, na madrugada do dia 8 de fevereiro ela decidiu remover cerca de 500 pessoas das comunidades de Tabuleiro, Socorro e Piteiras, em Barão de Cocais.

* Engenheiro ambiental com curso de Pós-Graduação no UNESCO-IHE-Delft, Holanda. Trabalha há 28 anos como Consultor Ambiental na bacia do Rio Doce. Foi Secretário Adjunto de Meio Ambiente do Governo de Minas Gerais.
15/02/19
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Comentários

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Lúcia Magalhães Torres Bueno

05 de abril, 2019 | 14:35

“Artigo esclarecedor! É necessário demonstrar o mínimo de dignidade com os atingidos, conforme Claúdio B. Guerra salienta. Eles tiveram suas vidas mudadas involuntariamente, sofreram e sofrem com os danos que são irreparáveis (tanto materiais quanto simbólicos). E ressalto que é de extrema importância o cuidado para com eles, pois os atingidos de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira, além de tentarem viver no dia a dia, as situações da rotina diária que faz parte da vida de todos nós, para garantirem seus direitos têm que participar de infinitas reuniões, audiências públicas e diversas outras atividades, na busca de atuarem como protagonistas da reparação.”

Verdade

15 de fevereiro, 2019 | 16:27

“Eu tb ACREDITO na impunidade, ou melhor, tenho certeza. Bem vindo ao Brasil, país onde tudo funciona com o "jeitinho brasileiro". Barragem ilegal, CT sem alvará, Helicóptero nao autorizado a fazer taxi aério ... vamo que vamo Brasil !!!”

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