19 de janeiro, de 2019 | 07:58
Triunfo do esforço
De foiceiro a diretor da CVRD, a trajetória singular do homem que dá nome à estação ferroviária de Timóteo José Célio de Sousa
José Célio de Sousa
Mário Carvalho representa o exemplo vivo do quanto podem a inteligência, o zelo, probidade e amor ao trabalho, lealdade com seus chefes e amigos e força de vontade”, diz um trecho da circular de 25 de novembro de 1952, assinada pelo engenheiro Alencar Araripe, superintendente da Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM). De Eliezer Batista, o engenheiro que reinventou a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), o funcionário exemplar mereceu elogios ainda mais expressivos. Foi um período heroico da Vale do Rio Doce, colocar a companhia de pé não era apenas um desafio de engenharia; por vezes, era um trabalho para Fernão Dias Paes Leme, Bartolomeu Bueno da Silva e outros.
Como bandeirantes, precisávamos nos embrenhar por vegetações fechadas, hostis ao avanço do homem. Nesse período, um personagem de imenso valor foi Mário Carvalho. Mesmo sendo topógrafo, ele pode ser perfeitamente emoldurado no rol de engenheiros que trabalharam na empresa. Seu talento superava qualquer diploma. De origem inglesa e italiana, era um homem dotado de vasto conhecimento técnico, algo fundamental naquele momento”.
Nascido em 21 de janeiro de 1897, mas registrado em 8 de janeiro de 1898, em São José da Lagoa (atual Nova Era), Mário Carvalho de Azevedo Barros era admirado também pelos companheiros por sua simplicidade, perseverança e extrema competência profissional. Seus pais foram Pedro Afonso Júnior e Alice Carvalho Azevedo, que residiam na Fazenda Pataló. Aos sete anos foi matriculado no Grupo Escolar Desembargador Drumond, o que o obrigava diariamente a fazer uma longa caminhada para assistir às aulas. Ao concluir o curso primário, empregou-se na Selaria Baptista e Irmão; e aos 25 anos casou-se com Ana dos Santos Gervásio, indo morar na Fazenda Velha, pertencente a José Baptista da Silva, que era seu patrão.
Em seu livro Adeus, São José da Lagoa, o médico e memorialista José Baptista Filho, sócio-fundador do Instituto Mineiro da História da Medicina, traçou o perfil de Mário Carvalho na juventude: É um moço alto, robusto, de tez queimada pelo sol, enrijecido na luta pela vida. Aprendera a enfrentar o trabalho árduo do campo, levantando-se antes do amanhecer. O trabalho para esse jovem simples e rude não é uma imposição da vida, uma obrigação. É um ato espontâneo, inerente, natural como comer e dormir...”. Foi assim que, em 1923, foi admitido como auxiliar de serviços na construção da EFVM, abrindo picadas na mata como foiceiro (por usar a foice) para a equipe de topógrafos.
Promoções e malária
Na época, a vida dos operários da ferrovia era crivada de dificuldades. O trabalho, de no mínimo 12 horas diárias, era todo braçal; a alimentação era composta basicamente de arroz, feijão, farinha de mandioca, charque e café. O cardápio frugal era quebrado com a pesca de surubim ou robalo, a caça e a extração de palmito. A natureza hostil e a malária encarregavam-se de completar a rotina dos trabalhadores. Nos primeiros anos de serviço, Mário Carvalho foi acometido sete vezes pela doença. Não existia lazer, nem leis trabalhistas. Mas, disciplinado e determinado, Mário Carvalho rapidamente despertou a atenção dos superiores, passando de foiceiro a auxiliar de topógrafo e, em seguida, sendo promovido a topógrafo.
Nessa função, trabalhou na retificação e desvios de vários trechos da linha, e em projetos de construção de pátios. A precariedade das condições do serviço obrigava que o assentamento dos dormentes fosse feito diretamente no solo, sem os lastros de brita usuais, o que exigia reposição constante dos trilhos. A proximidade da ferrovia com o Rio Doce também exigia reparos constantes no nivelamento e mudanças no traçado da linha. Circunstâncias, no entanto, que propiciaram a Mário Carvalho (que tinha apenas o curso primário) experiência nas áreas de engenharia civil e ferroviária. Tal experiência pode ter sido o motivo do seu desligamento temporário da EFVM, em 1939, para trabalhar como mestre de obras na construção da Ponte Benedito Valadares, em Presidente Vargas, nome de Nova Era entre 1938 e 1942.
Uma de suas filhas, Maria de Lourdes, residente em Nova Era, relembra que, devido à carga excessiva de trabalho, seu pai cultivou pouca presença com a família. A atividade dele era percorrer todo o trecho da ferrovia viajando a cavalo, e isso o distanciava dos filhos. Ele chegava a ficar meses longe de casa. Certa vez ele chegou com a perna fraturada devido a uma queda, e muito abatido, mas disse que gostava muito de nós. Quando eu estudava em Divinópolis ele me enviou uma carta muito carinhosa, dizendo que a felicidade dos filhos era a felicidade dele. Foram essas as poucas manifestações de afeto que me lembro”. A professora aposentada recorda também de um episódio curioso acontecido no Rio de Janeiro com seu pai. Uma produtora de cinema convidou-o para interpretar um personagem alemão em um filme, em razão de seu porte físico e traços elegantes. Mas ele respondeu que não deixaria sua Anita, como ele chamava mamãe, por nada”.
Cidadão honorário
Continuando sua carreira na EFVM, o nova-erense admirador de Getúlio Vargas (tinha um retrato do presidente na copa de sua casa) exerceu as funções de feitor, mestre de linhas, auxiliar- técnico e, finalmente, em 1958, foi promovido a engenheiro-residente da Terceira Residência da Via Permanente, sediada em Coronel Fabriciano, abrangendo o trecho de Naque a Itabira. Nos anos 1940, supervisionou a construção da linha Desembargador Drumond-Itabira, que levou os trilhos até o Pico Cauê. Trabalhou ainda no assentamento e nivelamento da linha Governador Valadares-Cachoeira Escura. No início dos 1960, idealizou e projetou a Variante de Sá Carvalho, que permitiu à CVRD implantar os primeiros comboios de trens com mais de 100 vagões de minério.
Antes, em princípios de 1950, numa frente de trabalho em Baguari, foi abordado por um jovem engenheiro recém-formado, seu conterrâneo, à procura de emprego. Era Eliezer Batista, fichado na mesma hora, nascendo daí uma amizade duradoura. Em 1961, atendendo às novas regras do governo Jânio Quadros para que as estatais tivessem um funcionário de carreira no quadro de diretores, Mário Carvalho foi indicado para a diretoria da CVRD.
Ao se aposentar três anos depois, após 40 anos de serviços prestados, Mário Carvalho escreveu uma carta de despedida emocionada a todos os companheiros e passou a morar num sítio a seis quilômetros de Nova Era. Curiosamente, mesmo aposentado, em uma circular, a CVRD o autorizou a parar qualquer trem de minério, caso precisasse.
No dia 18 de maio de 1974, Mário Carvalho morreu vitimado por um acidente vascular cerebral (AVC), em Coronel Fabriciano, mas foi sepultado em sua terra natal. Dez dias antes tinha recebido o título de cidadão honorário de Itabira. A cidade que recebera animosamente os trilhos da EFVM em 1942, prevendo a destruição do Pico Cauê, o homenageará ainda ao batizar uma praça com o seu nome. Em agosto de 1974, a Rua dos Operários, onde morou por muitos anos em Nova Era, passou a se chamar Mário Carvalho. E em 1980, a CVRD lhe prestou uma última homenagem, colocando seu nome na nova estação de Timóteo.
Dois de seus filhos, Moysés e Abel Carvalho, ambos falecidos, eram muito conhecidos no Vale do Aço. O primeiro trabalhou no Banco do Brasil, em Timóteo, e o segundo deu prosseguimento ao trabalho do pai, assumindo a função de engenheiro-residente da Terceira Via Permanente da EFVM.
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