19 de janeiro, de 2018 | 21:13
Brasil-Japão: uma amizade forjada em trabalho e respeito
Histórias de japoneses e brasileiros pioneiros da Usiminas e de Ipatinga mostram o quanto suas culturas se integraram e aprenderam a conviver juntas para se prosperarem
Fernando MendanhaQuando pisei em terra brasileira, senti muita saudade do Japão. Houve um sentimento diferente.” Há exatos 58 anos, no terceiro domingo de 1960, Tsuruichi Urabe desembarcava no Brasil, registrando seus primeiros sentimentos em anotações de diários, que depois daquela viagem passariam a acompanhá-lo até os seus 97 anos, em 2006.
Na bagagem, a clareza de quem trazia a missão de reconstruir sua vida bem longe de onde nascera. Desafio parecido com o de João Braga Mendanha, quando dois anos mais tarde, aos 38 anos e já com uma família de oito filhos, ouviu na capital mineira a notícia que mudaria para melhor a sua vida: a Usiminas estava contratando empregados para sua construção.
Mergulhar em memórias escritas, faladas e fotografadas como essas é preservar a história de milhares de pessoas que passaram e/ou fincaram novas raízes em Ipatinga. Na época, um projeto de cidade a ser desenhada no Leste de Minas Gerais, a partir do entorno de onde se instalara a maior fabricante de aços planos da América Latina.
Em 26 de outubro de 1962, quando o presidente da República, João Goulart, acendeu o primeiro alto-forno da usina, os já amigos Urabe e Mendanha estavam lá, presenciando, inclusive, a primeira corrida de gusa horas depois.
Fizemos muita amizade, principalmente com o pessoal da Mendanha. O Sr. João era muito amigo do meu sogro, desde os tempos em que moravam nos alojamentos do bairro Santa Mônica, durante a construção da Usina”, destaca Matsuko Urabe, cujo marido Yasuhiro, filho mais velho de Tsuruichi, também viria do interior de São Paulo para trabalhar na Usiminas. O pai havia conseguido fichá-lo e, aos poucos, foi aprendendo tanto o novo trabalho quanto a nova língua.
Já a experiência em siderurgia vivida pelos amigos mais velhos, tanto em Fukuoka quanto em Belo Horizonte e Ouro Preto, contou muito para as posições que assumiram. A de fazer e ensinar um novo ofício aos mais jovens, em um dos maiores projetos de cooperação econômica entre Brasil e Japão na história.
A Usiminas foi o primeiro investimento no exterior feito pelo Japão no pós-guerra”, lembra Minoru Sakuraoka, filho de japoneses nascido no interior de São Paulo. Um sonho concretizado durante o governo de Juscelino Kubitscheck, em 1957, com a assinatura do acordo Lanari-Horikoshi. O tratado viabilizou a construção da empresa no formato de capital misto (60% estatal e 40% japonês).
A busca por um sócio estrangeiro deu início a uma série de missões, tanto de empresários
mineiros para visitarem empresas na Alemanha, França e Itália quanto de europeus rumo à Minas.
Senti que estavam querendo vender equipamentos. Os japoneses também queriam, porém, o
equipamento deles não era ainda suficientemente conhecido. Então, eles fariam uma barganha
melhor pra nós, trariam também capital de risco e os quadros técnicos”, explica o economista
Jayme Peconick, que na época era chefe do Departamento de Estudos Econômicos da Fiemg. Seu
depoimento no livro Japoneses no Vale do Aço, do jornalista mineiro Carlos Alberto Cândido, deixa
claro que os japoneses queriam mostrar ao mundo o seu valor como potência que ressurgira para
crescer. Tanto que, depois que a Usiminas começou a produzir, eles passaram a vender
equipamentos para Argentina, Estados Unidos, Europa e todo o mundo.
Para construir a Usina, projetada para produzir 500 mil toneladas de lingotes de aço, a obra ilustra
ainda que vieram do Japão 400 técnicos e alguns engenheiros. A construção da cidade foi um
brinquedinho, perto da construção da usina”, são as palavras de Luiz Verano, engenheiro chefe de
ambas as construções. Todas as posições técnicas de importância foram entregues aos 400
japoneses”, reforça no mesmo livro o presidente da empresa na época, Amaro Lanari Júnior, que
conduziu as negociações que viabilizaram a parceria. Já os brasileiros acompanhavam tudo. Havia
sempre um japonês trabalhando com um ou dois brasileiros olhando por cima dos ombros. Nós
aprendemos muito assim”, completa Verano.
A figura do mestre
Essa proximidade foi uma das primeiras e principais percepções dos brasileiros sobre o modo
japonês de botar a mão na massa para ensinar. Isso encurtou as relações de trabalho. Ou seja, a
noção de hierarquia estava eliminada, ou, pelo menos, flexibilizada. O capitalismo quando chega
ao Japão encontra um país altamente tecnológico. Não a tôa, o país aparece nos anos de 1940
como potência, porque soube aperfeiçoar o trabalho dos chamados mestres de ofício, valorizando
o gesto de compartilhar o conhecimento sobre o todo com os demais ajudantes. Isso possibilita ao
operário saber ao máximo sobre o que acontece na fábrica, e não sobre uma etapa apenas, como
peça de encaixe de uma engrenagem na sátira de Charles Chaplin no cinema. A indústria de lá
posicionou o trabalhador para ser o cérebro de obra, e não a mão de obra. Esse era o principal
avanço frente ao capitalismo praticado nos Estados Unidos e na Europa.”, explica o historiador
Sávio Tarso.
O respeito sobre a figura do mestre está ligada até os dias atuais ao papel do professor,
os mais respeitados no Japão”, destaca Minoru. Em cumprimentos, os japoneses costumam abaixar a
cabeça para outras pessoas. O professor é a única profissão que não abaixa a cabeça para o imperador.
Cumprimenta de igual para igual e é o imperador quem se abaixa. É a figura do mestre.”
Nas escolas japonesas, crianças são educadas
desde cedo para trabalharem em grupo. Um espírito milenar de sobrevivência, por se tratar de
uma cultura desenvolvida em um pequeno território, vulnerável a diversas intempéries, recursos
naturais escassos e terras agricultáveis limitadas. Essa ideia de humanizar o trabalho é muito
japonesa, por ser uma sociedade muito solidária, com um senso de coletividade grande. E foi essa
a maior contribuição que o modelo capitalista japonês pôde dar à Ipatinga”, pontua Sávio.
Para o historiador, para além das relações, isso se fez presente desde o uso de um mesmo
uniforme por todos a até a forma como como a cidade foi planejada, em que se distribuem
empregados aos moldes da fábrica, com bairros operários e bairros de chefia, clubes, espaços de
lazer e de cuidado com a natureza.
O capitalismo japonês foi superado por esse capitalismo muito mais agressivo dos Estados
Unidos, China, Índia e Coreia do Sul, tanto que o PIB (Produto Interno Bruto) do Japão não cresce
significativamente há mais de duas décadas. Ainda assim, todo mundo já olhou para lá e desejou
ter uma sociedade como aquela, pois eles têm menos pobres que os demais países ricos e sempre
se preocuparam com questões sociais e ecológica, com soluções inteligentes”, completa.
Festa da integração
A primeira vez que Marconi Mendanha e os irmãos viram um japonês foi em casa. A fisionomia de
cabelos lisos e olhos puxados logo chamaram a atenção. Para as irmãs Selma e Delma, o impacto
foi ainda maior quando ouviram do próprio o convite feito ao pai. Seu João, vá levar as meninas
no lançamento do nosso Clube Japonês, no bairro Cariru. Vamos fazer churrasco o dia inteiro. Eu
fiquei encantada, de ficar só olhando para o rosto dele. E quando cheguei lá achei engraçado, por
ver aquela gente, todos iguais”, conta Selma Mendanha.
Era a primeira vez que saíam em Ipatinga, desde que chegaram em 12 de março de 1964. Era a
primeira também que comiam quiabo no meio do arroz”. E também sushi e sashimi. Fizeram
comida brasileira e japonesa. Eles queriam tirar foto com todo mundo e era aquela felicidade,
todo mundo rindo, bebendo, confraternizando”, lembra Delma. O clube se transformaria mais
tarde na Associação Nipo-Brasileira de Ipatinga (ANBI), ponto de encontro até hoje de descentes e
da cultura oriental, com atividades festivas, esportivas e recreativas.
Poucos meses depois, outra festa inesquecível. A visita dos atuais imperadores do Japão, Akihito e
Michiko, ao Brasil, movimentou os alunos da Escola Complementar Maria Rosa, onde hoje é o
Colégio São Francisco Xavier. Foi tão lindo quando o príncipe chegou. Ele passou de carro aberto,
e todo mundo da escola acenava com bandeiras dos dois países. Eles novinhos, ô, meu Deus!”,
completa.
Moravam muitos japoneses também no bairro Bom Retiro, próximos à casa da família Mendanha.
Tereza lembra bem dos Shibata, dos Tahara, dos Watanabe e, principalmente das brincadeiras de
rua com as filhas que tinham a sua idade. O japonês é assim, é amoroso, é muito bom. Eu falo
que o japonês não perde o vínculo com o brasileiro.” É o lado família, sociável que também chama
a atenção de Marconi. Ele é seu amigo até os dias de hoje não pelo nome que você tem, mas pelo
dom de gostar pela simplicidade.”
Boas lembranças
Nissei filha de japoneses nascida no Brasil, Matsuko lembra de quando o futuro marido saiu
daqui para conhecê-la. Em poucos meses, já estava casada com Masahiro Urabe e de malas
prontas para viverem na cidade da Usiminas. Quando cheguei, eu assustei. Aqui era mato, vim de
São Paulo pra cá e não conhecia ninguém. Tinha vontade de pegar a mala e ir embora. Hoje tenho
77 anos e não quero mais sair daqui”, lembra ela, mãe de três filhos Midori, Masahiro e Harumi.
O sorriso tímido é de quem ainda sente muito a falta do marido, falecido há três meses. Na
lembrança, um companheiro comunicativo e com o espírito japonês dos antigos mestres de
ofício. Meu marido tinha o dom de ensinar. Ele era muito calmo e diferente do meu sogro,
que era estourado.” Tsuruichi dizia ser difícil lidar com brasileiros no ambiente de trabalho.
Era muita diferença de pensamento. Ele também não conversava muito em português
e estranhou bastante a comida no bandeijão. Ainda sim, gostava muito da empresa e tinha amor
pelo trabalho que fazia. Era tão preciso nos cálculos e nos relatórios, que as vezes o computador
errava e ele não”, se diverte com orgulho Matsuko. Todo mundo respeitava meu sogro.
Chamavam-no de Urabe San, um cumprimento que é a mesma coisa de Senhor Urabe. Então lá
dentro, ele não gostava de ser chamado de você ou somente de Urabe. Só atendia por Urabe San.
Respeito e disciplina, que aprendeu no Japão”, completa.
Ponte entre dois mundos Sempre que a barreira do idioma surge como
um empecilho à integração e ao conhecimento, Minoru Sakuraoka é um dos
intérpretes sempre a postos para a Usiminas e a Nippon Steel. Paulista da cidade de Pereira
Barreto, chegou à Minas em 1969 para trabalhar no Laboratório de Testes Mecânicos.
Migrou para a atual função seis anos mais tarde e não parou mais. Quero completar 50
anos de Usiminas em 2019”, conta ele, que já acumula no passaporte mais de 50 viagens ao Japão.
O motivo de tantas idas e vindas, ora acompanhando treinandos, ora recebendo assessores, foi o contrato de assistência técnica assinado por ambas empresas nos anos de 1970. O acordo se estendeu até a sua
sétima renovação, até meados de 2012. Se é bom ir para o Japão? É bom demais, porque lá é bom
demais”, brinca o bem-humorado Minoru.
Contudo, a seriedade logo volta a conversa sempre que o assunto exige. Durante as viagens, fazia questão de frisar a orientação dos diretores gerais da usina, que era sempre a mesma: lá no Japão, não se comportem ou pensem individualmente. O que está em jogo é o nome da Usiminas”. Por isso, sua função sempre foi além de mero tradutor, mas a de ponte de conhecimento entre duas culturas e dois povos distintos.
Por que o nome do Brasil é sujo lá fora? Quem fez isso? Não foi italiano, americano, espanhol não, nem argentinos. Foram os próprios brasileiros que foram lá fora e fizeram cagada. Então, sempre mostro isso: temos a oportunidade de mostrar o nosso lado positivo, de que o brasileiro é honesto e respeitoso. Zelar pelo Brasil e pela Usiminas, sempre cobrei isso e chamei a atenção deles. Quando alguém entre nós cedia um lugar no metrô, as pessoas perguntavam de onde éramos. Quando falavam do Brasil, ficavam admirados. Porque a imagem que eles tinham era de
que só tinham florestas e índios. É de imagens positivas assim que nós precisamos.”
Tabus Culturais
Sociáveis e, ao mesmo tempo, isolados. Essa contradição humana que a sociedade japonesa
tem”, na visão do historiador Sávio Tarso, é ponderada por Minoru Sakuraoka. Japoneses não são
isolados, são reservados. Nas colônias em São Paulo, não gostavam de se misturar. Onde eu nasci,
90% da população era japonesa”. Ele ainda lembra do termo gaijin, muito usado e até de forma
pejorativa para se referir a um forasteiro. No caso, aos brasileiros, quando, na verdade, o gaijin
eram eles”, questiona Minoru.
Nesse sentido, a miscigenação era um dos tabus entre os primeiros imigrantes. Um
japonês gostou de mim”, lembra Selma Mendanha. Seu nome era Akio e ele queria namorar comigo e ia lá em casa. Só que eu tinha um namorado, brasileiro, e ele queria que eu terminasse. Um belo dia, ele chegou
com um presente e falou: estou indo embora porque o meu irmão descobriu que estou
gostando de você. Vou para o Paraná, porque na nossa cultura, a nossa raça de japonês não
pode misturar com brasileiro, só pode casar japonês com japonês. E por isso vou abandonar a Usiminas e vou embora”, lembra ela, cujo olhar se encantou desde a primeira vez que conheceu japoneses.
Arigatô, uai!
Há quem diga que a Usiminas não teria dado tão certo se não tivesse se instalado em Minas
Gerais. E não apenas pelas questões logísticas próxima das maiores jazidas de minério de ferro
até então conhecidas no país, acesso ferroviário e ao lado de um rio mas, sobretudo, pelo seu
povo. O fato é que o jeito trabalhador do mineiro, sendo acolhedor e ao mesmo tempo reservado,
não encontrou dificuldades para se integrar ao jeito japonês de empreender.
Natural de Itabirito, Minas Gerais, João Mendanha, saiu de casa nos anos 1940, ainda adolescente
para trabalhar em uma fundição na cidade vizinha de Rio Acima. Foi na pequena fábrica, onde se
produziam panelas de ferro, fogões, pias e enxadas, que conheceu a esposa Aurora, com quem
teve oito filhos. Em um determinado dia, ele saiu e foi em casa almoçar. Quando os empregados
voltaram do horário de almoço, a porta estava fechada. Ninguém entrou mais. A firma faliu”,
conta o filho João. A necessidade forçou-o ir para longe de casa e da nova família novamente.
Trabalhou em metalúrgicas de Belo Horizonte e de Miguel Burnier.
Experiências acumuladas que o levaram para ser contratado pela Escola de Minas de Ouro Preto,
como instrutor de laboratório. Foi nas aulas práticas de fundição de peças que fez amizade com
os universitários, entre eles o aluno Rinaldo Campos Soares”. Ao saber da Usiminas anos mais
tarde, foi à rua Timbiras, na capital, fazer um teste e já veio para Ipatinga como encarregado,
cargo abaixo do supervisor, equivalente a um líder.
Ele pegou o jeito de trabalhar japonês, com simplicidade, responsabilidade e pontualidade e o
enquadrou dentro da filosofia brasileira. E isso eu também aprendi com ele. Se eu fosse trabalhar de
turno às 23 horas, às 22 horas eu já saía de casa, seja de bicicleta ou de carro. Aprendi com pai que o tempo
é precioso”, ensina João, que também trabalhou na Usiminas por 25 anos.
O Mendanha pai, antes de trabalhar por 11 anos na Usiminas até se aposentar, em 1973, num
determinado dia, recebeu na Fundição e Forjaria a visita do novo chefe de seção. Era Rinaldo
Soares. E ambos passaram a trabalhar juntos novamente. O Rinaldo tinha a teoria e pai tinha a
prática. Tanto que, mesmo na Usiminas, passou a ser chamado pelo chefe de professor. Foi ele
que me ensinou”, dizia o futuro presidente da companhia anos mais tarde. O Rinaldo comprou
essa ideia, essa mentalidade humanística. Eles não olham para isso aqui apenas como negócio,
mas como lugar de desenvolvimento”, reforça Sávio Tarso.
Essa sinergia de esforços e culturas de outrora enfraquecida nos últimos anos, principalmente
por conta das tensões e divergências entre os dois maiores grupos de acionistas da empresa hoje,
os japoneses da Nippon Steel & Sumitomo Metal e o grupo ítalo-argentino da Ternium/Techint
volta a dar sinais positivos novamente.
Ações de aproximação e interação de ambos os lados e, principalmente, da empresa com a
comunidade se intensificaram. Em 2017, a Usiminas voltou a registrar lucro líquido no primeiro
trimestre, após amargar 11 períodos de prejuízos. O ano foi ainda um tempo de superações. No
mercado, as ações da Usiminas na bolsa de valores B3 liderou as valorizações, com alta de
121,95%. No âmbito social, a Fundação São Francisco Xavier trouxe para o Hospital Márcio Cunha,
em Ipatinga, a primeira Unidade de Oncologia Pedriátrica do leste de Minas Gerais, e ainda
reabriu, em São Paulo, o Hospital de Cubatão, em parceria com a prefeitura local.
Não por acaso, o estímulo do atual presidente Sérgio Leite, em suas apresentações de resultados
do segundo trimestre com empregados e entidades de classe da cidade, resgatou o otimismo e o
desejo expresso por uma das pessoas que mais souberam integrar as potencialidades de mineiros
e japoneses na cultura Usiminas. Não poderia deixar de lembrar das palavras do nosso eterno
presidente Rinaldo Soares, ao dizer que o que mais ardentemente desejamos é que tudo dê certo,
que os nossos sonhos se realizem, decepcionando os incrédulos e pessimistas”.
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