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06 de abril, de 2017 | 08:49

A escola pública e o polidor de palavras

Amadeu Garrido

Divulgação
Seu nascimento ocorreu no Brasil, mas há um tempo considerável. Naquela época, seu pai, sem posses materiais e dono de poder criativo incomum, no campo da literatura, com muita perspicácia e sabedoria indireta, tornou-o amante férreo da língua portuguesa. Dizia-lhe que seria um limador de versos, um polidor das palavras. 

Seu pai tinha consciência límpida da importância das vigas estruturais, que não sustentam, apenas, os grandes edifícios. A base sólida dos elementos estruturais é indispensável à política, à religião, neste caso ainda que revestida de fé, às letras jurídicas, às letras médicas, às letras filosóficas, às letras, ou seja, às letras literárias, em que o estilo alegra o leitor, onde é mais importante a forma do que a matéria. É que, imperceptivelmente, a forma transforma.
Em síntese, seu pai era um amante responsável da divina arte de escrever. 

Hábil, desde tenra idade conseguiu abrir o coração de nosso polidor à beleza da comunicação, sobretudo a escrita. Clara e simples, a linguagem deveria fluir como um rio limpo, em curso distante dos homens que o enchem de obstáculos. Nada de pretensas erudições, que tornam hermético o texto. O que não significa que o homem que escreve não deva fazer uso de um vasto vocabulário.

E o leitor deve dar-se ao trabalho, quando não conhece o significado de um vocábulo, de recorrer aos dicionários ou enciclopédias. Para o pai de nosso homem, sem dar-se à tarefa de pesquisar o porquê, esse era o segredo do futuro feliz da humanidade. Se, neste mundo, consoante emana de uma lenda, não sabemos se urbana ou rural, há, sempre, cinco pessoas iguais em pensamento e emoções, e seu pai era um brasileiro meio réplica de Fernando Pessoa. 

Para repassar ao filho aquela estrutura, propiciou-lhe um curso básico de latim, logo na primeira juventude; algumas noções de grego; e incentivou-o nas leituras da literatura portuguesa e brasileira, desde os idos primitivos na Península Ibérica. Mostrou-lhe a magia do escrito de Machado de Assis, um estilo de palavras curtas, diretas e, embora criativas, sem jamais perder o rumo. A boa escrita fica presa na memória, até o fim. 
Era necessário, porém, além disso, dar ao nosso homem a educação formal.

Na primeira metade do século passado, os cursos primários eram bons, nas escolas públicas. Os ginasiais também. Porém, o muro de separação entre as elites e o povo estava nos cursos médios, os imediatamente anteriores aos superiores, caríssimos em relação às condições de nossas classes emergentes. 

Dos poucos cursos superiores, talvez somente as Faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda, criadas no longínquo ano de 1827, eram gratuitas. Contudo, dado o fato apontado, inacessíveis, além de meramente bacharelescas, em que os filhos dos grandes proprietários e donos do Brasil se preparavam para prorrogar o espólio. 

Seu pai trabalhou em dobro, em triplo, sob o sol e sob as estrelas, mas conseguiu pagar um colégio a nosso homem. Três anos de guerra homérica, mas Troia foi conquistada. Depois os colégios públicos foram democratizados. Mas, ainda, depois e até nossos dias, a escola pública brasileira, como dizem os juristas, padece do vício de nulidade insanável. Não existem, ou são ineficazes. 

Nosso homem concluiu seu curso superior gratuito, ao qual juntou seu autodidatismo. Já prestou enorme contribuição à literatura brasileira. Foi e é feliz. Sabe que desbravou parte do cáustico caminho humano. Sonha comumente com seu pai, mas não se pronuncia ou ouve algo sobre esse tema, porque já alcançou uma idade em que certas lembranças e certezas despertam um impulso irrefreável de chorar. Triste.  

Polir palavras... mas temos mais o que fazer, dizem, em paráfrase de Guimarães Rosa, os tetéus.

* Advogado e jurista, com uma visão crítica sobre política, assuntos internacionais e temas da atualidade. 
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