16 de março, de 2017 | 11:16

O amor é um remédio, só não tem receita

Beto Oliveira

Divulgação
Freud não esconde sua ressalva em relação ao mandamento bíblico que ordena o amor ao próximo. Ele sabia que não podemos pedir a alguém para amar, afinal, o amor não é uma escolha consciente. Não se ama apenas por ser obediente. De forma que recomendar o amor seria de fato uma prática mais própria aos livros de autoajuda e à religião do que à psicanálise.

Mas mesmo como prática religiosa Freud questiona se teria algum sentido amar o próximo simplesmente por ele estar próximo. O psicanalista acaba preferindo a frase de Heine, poeta alemão considerado o último dos românticos, que dizia sem reservas: “Deve-se, é verdade, perdoar os inimigos - mas não antes de terem sido enforcados". Para Freud, aí reside a verdadeira dificuldade do mandamento, amar o inimigo, aquele que julgamos não merecer nosso amor.

No entanto, o mesmo Freud não só afirma que precisamos amar para não adoecer, como define a melancolia como sendo a perda da capacidade de amar. Ora, não estaria também Freud recomendando o amor? Sim e não. A diferença entre a psicanálise e a religião, assim como a diferença entre a filosofia e os livros de autoajuda, pode talvez ser retirada da definição de filosofia do francês André Comte-Sponville.

Para ele, a filosofia tem a felicidade como meta, mas a verdade como norma. A psicanálise pode até apontar para a felicidade, mas tem a verdade como regra. Em outras palavras, Freud nos demonstra algo que tem tudo para nos levar à felicidade: adoeceríamos menos se amassemos mais.

Algo que também pode ser encontrado em Camus, que diz: “Não ser amado é falta de sorte, mas não amar é a própria infelicidade”. Ou ainda em Clarice Lispector, que nos presenteia: “Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca”.

reud, Camus e Clarice pouco têm de religiosos ou de escritores de autoajuda, e a distinção é que eles, ainda que apontem para a felicidade como meta, usam a verdade como norma, ao menos o suficiente para saber que não devem fazer disso um mandamento. Eles reconhecem o amor como remédio, mas sabem da dificuldade em achar uma receita que seja eficaz. No dito freudiano, “cada um terá que encontrar sua própria salvação”.

O mesmo Freud também dirá que o impulso de amar é independente de seu objeto, e tampouco deve sua origem aos encantos deste. Em outras palavras, o objeto de amor é valorizado por ser amado, e não o contrário. Novamente, segundo Sponville, os pais amam seus filhos mais do que os filhos alheios não pelos primeiros serem mais amáveis. É justamente o contrário, eles parecem mais amáveis porque os pais os amam.

Se Freud pensa assim, por que então não poderíamos amar nossos inimigos, mesmo com os defeitos que neles enxergamos? Ora, se formos nessa direção cairemos num dilema de causalidade semelhante ao do ovo e da galinha. Sim, poderíamos amar nossos inimigos, desde que eles fossem enforcados, diria Heine, ou desde que eles não fossem nossos inimigos e passássemos a amá-los, talvez dissesse Freud.

Toda essa divagação nos leva a ver que o mandamento que nos ordena amar o próximo não é absurdo por estar longe da felicidade, mas por estar longe de um efeito verdadeiro. De fato, seremos mais felizes se amarmos mais. Aí temos a felicidade como meta, mas, por termos a verdade como norma, temos que aceitar que, embora tenhamos há séculos descoberto o remédio, não parece ser tão eficaz receitá-lo.

Ainda assim, isso é uma luz. E sabendo ou não que do amor depende nossa felicidade, seguimos, mesmo sem receita, amando. Em amizades, namoros, noivados e, por que não, casamentos. Nessas aventuras tão imprevisíveis também pode estar nossa salvação.

* Psicólogo. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço. Autor do romance “O dia em que conheci Sophia” e da peça teatral “A família de Arthur”.
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