16 de fevereiro, de 2017 | 13:15

A ditadura da beleza e como ela estraga a alimentação das pessoas

Cezar Vicente Jr.

Estamos no verão, e adivinhem só: vem Carnaval aí! Sol, praia, calor, corpos esculturais e... epa! Desde as épocas mais remotas sempre houve um determinado tipo físico em que as pessoas se inspirassem por ser considerado belo. Até o início do século XX, a beleza feminina era tida com um dom divino, uma dádiva que só podia ser imitada com recursos que deixassem as mulheres temporariamente similares ao considerado ideal. Alguns destes recursos eram apetrechos como o sutiã de bojo, as perucas, a maquiagem e o espartilho.

Com o desenvolvimento da medicina, alguns dos atributos “não-belos” foram aos poucos sendo classificados como doenças, por exemplo, a obesidade e a desnutrição. E a consequência é que toda doença está passível de ter uma cura. Então, tratamentos para várias questões, antes consideradas de estética, passam agora a também fazer parte do escopo da saúde. No meio dessa miscelânea estão o peso e a forma física. Desde sempre estiveram compondo as referências de beleza e feiura na história, mas sem dúvida nunca tão fortes como hoje.

Atualmente, basta uma pesquisa simples sobre “mulher bonita” na internet que você perceberá um padrão: jovens, loiras, magras e definidas, com bumbuns avantajados e seios proeminentes. Em nossa era temos algo inédito: os editores de imagem, que transformam pessoas já dentro do padrão de beleza em pessoas surrealmente aperfeiçoadas, construindo uma beleza de questionável possibilidade no plano real. Com a ajuda da superexposição dessas imagens, nossa referência vai ficando cada vez mais irreal.

Para se ter uma ideia, no último Miss Universo a ganhadora foi a francesa Iris Mittenaere, com um IMC de 18,3 kg/m², o que significa desnutrição grau I. No caso da canadense Siera Bearchell, com um IMC de 19,9 kg/m², a reação de parte do público foi cruel: ela foi achincalhada e chamada de gorda por muitos internautas, mesmo o seu IMC classificando seu peso como normal. Esse recente episódio nos mostra como a nossa referência de corpo bonito está viciada: o normal virou gordo e o desnutrido virou normal.

Sem dúvida, o peso corporal e sua composição tem uma relação importante com a saúde, porém não nos moldes que o senso comum diz. Não se trata de negar que o peso corporal tem uma relação importante com a saúde, mas o que temos hoje é um grande terrorismo. E com isso, no terreno onde está o peso estão misturadas também a saúde e a estética. Uma mistura tão profunda que é muito difícil percebermos em uma notícia, por exemplo, quando estamos falando de peso e quando estamos falando de estética.

No meio de tudo isso temos a comida. Essencial para a sobrevivência, mas muito temida. E, vale lembrar, atualmente vivemos numa era com muita disponibilidade de comida. Esta é vista como um manipulador do peso e forma do corpo, que, neste espectro, se materializa na forma das dietas da moda, dos alimentos/nutrientes mágicos e dos alimentos/nutrientes perigosos. Embebido no universo em que “cuidar” do peso passou de normal para uma norma de comportamento, o comer passou a gerar muita culpa, pois com frequência este “comer certo” não vem de acordo com o comer cultural, habitual, afetivo, simbólico, social e prazeroso.

Nesse ponto criamos dois polos: um deles, onde a pessoa está buscando alcançar o padrão (mesmo que sem sucesso) por meio da alimentação, medicamentos, shakes etc; e no outro polo onde a pessoa nega esse caminho e decide apenas comer. Esse último caso seria uma opção muito saudável se a nossa escolha alimentar não estivesse tão atravessada pela indústria alimentícia, a propaganda de alimentos, a onipresença dos processados, os modos de vida moderno priorizando os meios de produção em detrimento do cuidado do próprio comer, o distanciamento do cozinhar, a não percepção adequada da fome e da saciedade, entre tantos outros fatores.

Com isso, mergulhados nesse mundo onde é necessário ser belo, e não qualquer belo, mas o padrão (irreal), temos um prato cheio para a indústria da beleza, que se concretiza num verdadeiro mercado infinito. Muita gente sofre nesse fogo cruzado, na relação com o seu próprio corpo e também no relacionamento com a alimentação. A comida hoje foi reduzida a nutrientes, o que faz bem ou faz mal, o que engorda ou não engorda, o que é saudável ou não saudável, relegando um processo natural a uma dicotomia triste e traumática. E nesse looping eterno, comer perde espaço para emagrecer. É possível ter paz com o seu corpo e com a comida e isso deveria ser muito intuitivo, mas não é. E essa paz não exclui o “estar saudável”. Ao contrário, inclui. É preciso estar atento e criticar esse modelo de beleza único e de alimentação puramente focada em nutrientes e dicotomias. Assim podemos ressignificar uma cultura, pois a postura de um novo comportamento é o motor da mudança. Essa não é uma tarefa fácil, mas também não é impossível.

* Nutricionista, supervisor no Ambulatório de Anorexia Nervosa do Programa de Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Mestrando em Nutrição e Saúde Pública pela USP.
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