12 de janeiro, de 2017 | 15:43

Grandes farsas brasileiras e nossa tragédia cotidiana

Beto Oliveira

A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa. A frase famosa de Marx, que denuncia a tendência da repetição como farsa, pode ser explicada pela teoria de Henri Bergson, que diz que o humor é fruto de algo que aparece como mecânico onde deveríamos encontrar um conteúdo orgânico. A repetição revela algo mecânico que, repetido, já não é vivenciado de forma trágica, mas farsesca. Um exemplo elucida a teoria bergsoniana: dê um susto em um bebê e ele se aterrorizará, dê várias vezes o mesmo susto e teremos o riso, a farsa.

A história do Brasil também é repleta de repetições, e pode mesmo dar a impressão de que há menos tragédias do que farsas, no sentido mais amplo da palavra. Até mesmo quando mais poderíamos esperar uma história trágica, com heróis, lutas e sofrimento catártico, vemos um conjunto farsesco. A começar pelo grito da Independência, que, embora seja cantado como um ato heroico, não passou de uma grande farsa. Não houve guerra, nem graves rupturas. O Brasil passou de Colônia a País mais através de um acordo entre Portugal e Inglaterra do que como consequência de luta nacional. Por fim, mesmo independente o Brasil continuou monárquico e escravagista, e pagou indenização aos portugueses, através de empréstimos contraídos com os ingleses. Tragédia ou farsa?

A abolição da escravidão, que teria tudo para ser uma grande peça trágica, também cheira mais a farsa. Primeiro veio a lei Euzébio de Queirós, que, atendendo à pressão da Inglaterra, impedia o tráfico de escravos, mas que, por ser desobedecida, acabou sendo conhecida como “lei para inglês ver”. Depois veio a Lei dos Sexagenários, que libertava os escravos acima de 60 anos como se muitos deles chegassem a essa idade. Ficou conhecida como “lei da gargalhada”. E por fim, a própria abolição, que foi menos uma conquista popular do que uma concessão aos lordes colonialistas ingleses, que queriam acabar com o trabalho não remunerado para vender produtos aos novos assalariados das Américas.

A Proclamação da República também não parece fugir à regra. Embora o quadro de Benedito Calixto mostre cavalos em um ambiente heroico, o dia 15 de novembro de 1889 foi uma grande farsa, que foi desencadeada após um quiproquó, quando os militares acreditaram no boato de que o governo havia mandado prender Deodoro da Fonseca. O boato correu e fez com que os militares proclamassem a República, a saber, sem a mínima resistência. A fala de Aristides Lobo, de que “o povo assistiu bestializado à proclamação da República”, revela muito bem a apatia do gesto. Que, é claro, poderia ter sido grandioso.

No século XX (excetuando-se eventos de fato trágicos, como o do suicídio de Vargas), encontramos mais uma sequência de farsas. Da patética renúncia de Jânio aos Militares que pouco precisaram atacar para tirar João Goulart do poder. Daí, seguimos para o fim do Regime Militar, que também foi uma farsesca concessão “lenta e gradual” que não puniu nenhum dos ditadores. Chegamos então ao impeachment de Collor, que ganhou força midiática menos pela corrupção do que pelo confisco da poupança que atingiu as classes mais abastadas, classes que o tinham eleito também em uma tremenda farsa “globalmente” incentivada. Temos então o impeachment de Dilma, com votos para o filho, pela mãe, por Deus, pela família, e altos brados contra a corrupção vindos de investigados e réus.

Essa série de farsas não significa que não tenhamos as nossas tragédias. Ao contrário, a farsa parece ser o mote, o refrão que o Brasil escolheu para contar a sua história. Mas a glosa, essa sim, é cheia de tragédias e também de lutas. A farsa é, no Brasil, mais causa da tragédia do que a repetição desta. A questão é como transformar as lutas diárias de um povo criativo, forte e trágico, em mote para não continuarmos sendo pautados por farsas feitas por uns poucos.

* Psicólogo. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço. Autor do romance “O dia em que conheci Sophia” e da peça teatral “A família de Arthur”.
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