29 de dezembro, de 2016 | 16:48

Indignação - Por João Senna *

Chega de, a cada dezembro, rolar essa cantilena de mais um ano perdido. Ou quebramos essa rotina, ou o tal país do futuro não passará de uma quimera


Demorou, mas caímos do berço esplêndido. Atordoados, sacamos que o país supostamente maravilhoso continuará inviável sob o jugo de uma cúpula dirigente extremamente canalha. A criticada imagem de Cazuza, comparando o Brasil a um imenso puteiro, caducou. Uma quadrilha passou o rodo no que restava, saqueando cofres públicos, Petrobras e fundos de pensão. Até os aposentados foram tungados na tomada de empréstimos.

Por enquanto, estamos levantando os estragos. Conforme a Lava Jato, a Odebrecht pagou R$ 128 milhões em propina ao PT em seis anos. Agora, o Ministério Público da Suíça, ao analisar documentos do acordo de leniência assinado com o país europeu, revela que a empreiteira lucrava, em média, 4 milhões a cada 1 milhão pago em propina. E aos poucos vai caindo a máscara do PMDB, parceiraço do golpe eleitoral escamoteado pela distribuição de benesses em troca de votos. A roubalheira instalada no Palácio do Planalto serviu de senha para o agravamento do corporativismo, e da malufagem nas demais instâncias do poder.

A única e triste certeza nessa conjuntura é que a conta terá de ser paga pelo povão. Pelo menos, dessa vez, a plebe resolveu bufar. Instados pela consultoria Cause Brasil a definir, em uma palavra, o ano de 2016, mil pessoas de todas as regiões, idades e classes sociais, reproduzindo o perfil dos brasileiros levantado pelo IBGE, cravaram: Indignação.

A nossa estreia nesse costume de eleger uma “palavra do ano”, copiando uma tradição da Alemanha, Estados Unidos e Inglaterra, foi marcante. Conforme avalia Leandro Machado, cientista político e coordenador da inédita pesquisa, “nenhuma palavra resume melhor o estado de ânimo dos brasileiros com relação a este ano que acaba. Pelo perfil das palavras finalistas, sabíamos que a escolha se daria entre palavras fortes, carregadas de crítica – reflexo do período pra lá de desafiador pelo qual estamos passando. ‘Indignação’ despontou na preferência popular, com 41,8% de votos. Se levarmos em conta o significado formal de indignação, que é ira intensa, ódio, raiva experimentada diante de injustiça, afronta, violação de normas, veremos que o povo brasileiro está mandando um recado claro às nossas lideranças”, resume Machado.

Indignação concorreu com zica (da doença e da urucubaca), desafio, bolhas e desmoralização. Ao contrário de zica, que permite duas interpretações, a palavra escolhida é taxativa, contundente.

A verdadeira indignação implica em fugir à surrada estratégia de fulanizar o debate e resumir os nossos problemas a provocações entre coxinhas e mortadelas. Ou ainda perder tempo na contestação daqueles que continuam com a cabeça no século passado, idolatrando grandes carrascos da humanidade. Mais esperto, Fidel não quis estátuas, já antevendo que, em breve, seria derrubado como Lênin e outros da mesma linhagem.

O xis da questão no Brasil é a estrutura de poder, com claras violações das normas legais, nas três esferas. É duro, para os 12 milhões de desempregados, assistirem à tergiversação de uma “otoridade”, na tentativa de explicar o absurdo do contracheque mensal de mais de duzentos mil reais pagos a um dos felizardos marajás do “serviço” que deveria ser público.

Assim, não há Temer, zé dos anzóis ou melena confeiteira que dê jeito na bagunça. Que a nossa indignação, contrariando Samuel Rosa e Chico Amaral, seja bem mais que uma mosca sem asas e ultrapasse as janelas de nossas casas. Até mesmo para evitar que esse substantivo continue indefinidamente como a palavra do ano e as nossas lideranças se façam de surdas ao recado dos espoliados súditos. Chega de, a cada dezembro, rolar essa cantilena de mais um ano perdido. Ou quebramos essa rotina, ou o tal país do futuro não passará de uma quimera.

* João Senna dos Reis é jornalista

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