13 de outubro, de 2016 | 14:17

A poesia das crianças

Beto Oliveira

Manoel de Barros, em um verbete para seu “Glossário de transnominações em que não se explicam algumas delas (nenhumas) – ou menos”, diz que poesia é uma armação de objetos lúdicos com emprego de palavras, imagens, cores e sons, geralmente feitos por crianças, loucos e bêbados.

O artista mato-grossense reúne aí quatro categorias de pessoas que, consciente ou não, produzem armações que são iluminadas por uma força poética: o poeta, a criança, o louco e o bêbado. Figuras que costumeiramente nos encantam, mas que por vezes também podem nos assustar ou repelir.

Parece que dessas quatro classes de produtores de arranjos poéticos, a criança costuma ter um lugar especial, encantando mais do que assustando a maioria das pessoas. Afinal, o louco sempre traz, pelo menos em nossa cultura, a marca de um desequilíbrio na saúde, mesmo que mental. Já o bêbado é marcado pela adição à droga. E o poeta nos desafia com seu desejo, mesmo que algumas vezes escondido, de ganhar a vida construindo frases, o que agride nossa sociedade utilitarista que vê no suor o signo da dignidade.

Se a doença é a sombra da loucura, o vício o calo do ébrio e a vagabundagem a ruga do poeta, a criança é talvez a poesia que mais agrada aos olhos de nossa sociedade. A criança é o louco saudável, o bêbado sem droga, o poeta em idade de não trabalhar.

Assim, ela alcança o coração de muitos. Mas se o louco deve sua poesia aos supostos transtornos mentais, se o ébrio a alcança por meio da droga e o poeta a agarra devido a inspiração, a criança deve sua poesia a sua ingenuidade.

O artista argentino Quino, através de uma tirinha da Mafalda, compara a criança a uma pessoa que entrou no cinema no meio de um filme que os adultos já estão acompanhando há muito tempo. Assim, ela padece de não compreender ainda o funcionamento do mundo. Como um calouro que frequenta recentemente a Universidade, a criança explora o campus da vida.

E claro, recebe seus trotes: é convidada a acreditar em figuras como um homem gordo que desce pela chaminé de um sem número de casas numa única noite ou em um coelho que não sendo ovíparo fabrica seu próprio ovo de chocolate para oferecer, novamente, para um sem número de pessoas. Sem falar em alguns trotes que passam do limite e acabam por satisfazer impulsos sádicos dos adultos que tentam introduzir a força a criança nas normas dos veteranos.

A criança, então, ainda que receba tantos olhares pueris, tenta aos poucos deixar sua condição de calouro e entender o filme que está passando. Mas o que as crianças não percebem é que o filme que está passando não tem mesmo muita explicação, que é recheado de absurdos e de cenas que não têm a menor função. Mas a vontade de fazer parte é muitas vezes maior do que a vontade de entender.

E assim as crianças vão acostumando ao mundo do “é assim porque é assim”. E fingindo entender o filme mais do que o entendendo de fato, a criança vai aos poucos perdendo sua poesia para depois tentar recuperá-la na loucura, na embriaguez ou na poesia (ou lamentar a infância perdida). Por isso Clarice Lispector parece ter tanta razão em dizer que a diferença entre os quadros de Picasso, um poeta das cores, e o desenho das crianças é que a criança é inocente, Picasso se tornou inocente.

Em tempos de tamanho utilitarismo, de Ritalina desenfreada e de consumo galopante, que o dia das crianças nos lembre que não é preciso entender o filme todo para virar adulto e que conservar um certo olhar de perplexidade para a tela pode ser fundamental para que construamos um filme mais poético para as novas crianças que virão.

Beto Oliveira Psicólogo. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Coordenador do CEPP (Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço). Autor do romance “O dia em que conheci Sophia” e da peça teatral “A família de Arthur”.

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Comentários

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Alexsander Samora Santos

17 de outubro, 2016 | 11:35

“Tipo professor, só pra dizer que é muito bom perceber que existem pessoas que conseguem se colocar de maneira autêntica, e, porque não dizer, satírica, sendo presença na vida de tantos a partir da consciência do cuidado. Colocar as palavras que se apresentam, neste recorte, como mais acertadas, para dizer e, dizer bem, sabendo que do outro lado existem muitos a ouvir ou ler. Ética do cuidado. Ser aqui como possibilidade empática. Parabéns Beto Oliveira.”

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