20 de agosto, de 2016 | 09:07
O ônus da verdade vivida
Amadeu Roberto Garrido de Paula
A criança talvez não seja capaz de articular plenamente o modo como seu mundo se encaixa, nem o homem de expressar o significado de sua vida em palavras. Para a maioria de nós, a visão do mundo é uma verdade vivida, algo que simplesmente existe e que dificilmente procuramos descrever. Na verdade, só há motivação para fazê-lo se algo vai mal, se de alguma maneira nossa visão de mundo está inadequada ou em fase de mudança. Só então tomamos consciência dela (Danah Zohar, "O Ser Quântico").Há poucos anos a maioria de nosso povo, pobre, estava embalada no cântico de demagogos. As classes sociais haviam deixado de ser castas. Movimentavam-se de modo ascensional. A pobreza desaparecia. O emprego mostrava números satisfatórios. O Governo não se queixava de faltas de verbas públicas. Ao contrário. O FMI poderia receber nossa ajuda. Tirava-se sarro dos loirinhos de olhos azuis. A crise, ora, uma marolinha num oceano pacífico.
No momento em que as ondas se agitaram, ainda não foi hora da consciência do perigo. O Estado socorreu segmentos como o dos automóveis, sob os aspectos tributário e financeiro. Empréstimos longos, supostamente nos limites do orçamento, e carros "zero", jamais sonhados. O Brasil ainda não voava, mas era um avião que taxiava para tanto.
Ninguém percebia - ou queria perceber - que estávamos assentados sobre um vácuo de falsos potenciais. O dinheiro que nos mantinha derivara de conjunturas favoráveis, mas se entendia que caminhávamos sob mudanças estruturais, ainda que sob um Estado politicamente desorganizado, carente das reformas tão decantadas: política, administrativa, trabalhista, financeira, tributária. Sobre essas pilastras mal ajambradas, não se ergueria um estado de bem-estar permanente. Entretanto, a vida "vivida" dizia outra coisa. E a gerência política mantinha a falsa impressão, fundamental para seus propósitos eleitoreiros.
É claro que um edifício erguido nessas condições desaba, como desabou. O mal começou a dar as claras em momento eleitoral e, consequentemente, foi preciso manipulá-lo, fazer o diabo para manter o projeto de poder. Vieram à lume os acordos indecorosos com o legislativo para manter-se a miragem. A lei não poderia permanecer morta e ressuscitou. Ídolos começaram a descambar, um indício de que a consciência coletiva da maioria poderia começar a despertar para necessidade de mudanças, segundo aquele postulado da física.
Em verdade, são poucos os que têm consciência da vida do momento, seja materialmente boa ou má. A consciência mira o futuro, dias melhores (a teleologia aristotélica). É mais fácil saber o que queremos, ou com o que sonhamos, do que ter clareza sob os componentes de nossa realidade atual.
O barco soçobrou e, agora assim, temos consciência de que devemos escapar do naufrágio. Em política, porém, não há consenso. Felizes dos países que se limitam a dois grupos antípodos. Temos uma miríade de partidos sem cor, sem dor e sem valor, em que preponderam interesses pessoais e grupais.
O que se apresentou como ideológico se transformou numa gosma solidária de solidariedade aos corruptos. Dizem que retornarão do zero, da brancura das virtudes. É pagar para ver.
Só há um caminho, ainda que não se tumultue tudo com a deposição do governo provisório sob uma alegação de urgência e indesejável correria. Não há dúvidas de que, agora, conscientes do futuro, não mais crianças ou adultos alienados, devamos pensar na extração de nossos caroços prontos a se metastasiar, a partir de um novo texto constitucional que estabeleça com densidade e força os princípios das reformas estruturais, sem as quais não teremos sequer como caminhar a pé, pausadamente, mas em frente e com segurança.
Amadeu Roberto Garrido de Paula, advogado subscritor da respectiva petição inicial e poeta. Autor do livro Universo Invisível, membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas.
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