22 de maio, de 2021 | 18:30

Pega pelo ar

Marli Gonçalves *

Não são só doenças o que se pega pelo “ar”. Sentimentos, tristezas, alegrias, revoltas, preocupações também são transmitidos por esse meio etéreo, invisível, quase inexplicável. Atinge principalmente pessoas mais sensíveis, que acabam ligadas e envoltas nesse redemoinho de emoções coletivas.


Tem dias que a gente se sente bem esquisito. Está tudo bem, tudo bom, particularmente, mas não consegue estar feliz totalmente, como se faltasse alguma coisa que não sabemos exatamente o que é. Ou até, vá lá, temos alguma noção de onde vem a onda, mas não conseguimos fugir antes do caldo. Por exemplo, agora, a falta de um chão seguro nesse país, a sensação de estar sendo diariamente enganado, desconsiderado, dando a cara a tapa. Feitos de otário, chamados de idiotas, como se todos fôssemos incapazes de concatenar verdades, a realidade, e detectar as insistentes formas com que todos tentam nos enganar, seja com ameaças, mentiras, promessas ou atos que jamais se concretizam.

Tenho ouvido muitos comentários de pessoas avaliando que nunca viveram um momento como esse, e vindo de pessoas que, tanto como eu, já viveram bastante e em muitos outros momentos bem punks. Todos perplexos. Enfrentamos dificuldades, perseguições, a ditadura, tempos terríveis, mas onde o inimigo era claro, visível, e nos uníamos para combatê-lo com maior precisão.

Mas nada como agora, nesse mundo dividido, nebuloso, pior, onde ainda descobrimos entre pessoas mais próximas revelações que nos deixam abismados, como se o tempo tivesse piorado o caráter delas, atingido a inteligência delas, e isso aflige porque já não sabemos mais exatamente com quem contar. Não digo nem para uma possível revolta ou revolução: contar, para conversas, para assuntos do cotidiano, que digam respeito ao desenvolvimento humano, avanços nos relacionamentos, liberdade de escolhas. Confiança. A aflição é não conseguir planejar muita coisa além de manter-se vivo, e minimamente são, dia após dia.

“A aflição é não conseguir
planejar muita coisa além de
manter-se vivo, e minimamente
são, dia após dia”


Antes que me fulminem, esclareço que o país, sua política, seu desgoverno, é apenas um entre muitos motivos dessa sensação misteriosa, mas muito humana. A gigantesca lista passa até pelo aquecimento global, derretimento e deslocamento de icebergs maiores que a cidade São Paulo, tremores inexplicáveis ao redor do mundo, viagens à Marte, avistamento de objetos não identificados ou até mesmo o incrível nascimento de nônuplos.

Passa pelo ar pesado que respiramos com dificuldade, as águas que, ou chovem demais, ou não chovem, a camada de poluição que vemos no horizonte ao fim dos lindos dias de outono.

Passa pelo desatino de drogas batizadas consumidas por uma juventude que não chega nem ao amadurecimento em muitas formas de suicídio. De um lado, os que se deram bem com novas tecnologias. De outro, os que se amarram a garrafas para se jogar ao mar em busca de uma nação para chamar de sua. Passa pelo desfile de pequenos caixões de crianças mortas em guerras que não são suas, ou massacradas por quem os deveria proteger.

Chega pelo ar, pelo noticiário, pelos fatos que presenciamos, nas reações desmedidas, até nos incontroláveis pesadelos que nos sacodem o sono. Essa loucura toda e que já não era pouca parece agora multiplicada pela pandemia que paralisou a Terra e da qual insistentemente pensamos que sairíamos melhores.
Mas não estamos encontrando nem a porta. O que dizer então quanto a uma janela para respirar novos ares e esperanças.

* Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo.
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