26 de fevereiro, de 2021 | 14:51

A Lei de Gerson impera no Congresso Nacional

Marcelo Aith *

“Os senhores deputados, como fiscais da gestão do Poder Executivo, não teriam que ter a mesma gana em apurar a inapetência do governo federal no combate a pandemia ou na compra das vacinas?”

“Como sempre a Lei de Gerson, aquela do jeitinho brasileiro e da vantagem para si próprio, impera no Congresso Nacional”

Nem a maior crise sanitária do país, com uma aceleração de casos e mortes diárias, é capaz de barrar as aberrações propostas e discutidas pelos parlamentares no Congresso Nacional. Na noite de 24 de fevereiro, a Câmara dos Deputados, em flagrante desrespeito ao texto constitucional, deliberou e decidiu pela admissibilidade da Proposta de Emenda à Constituição nº 3, de 2021, de autoria do Deputado Celso Sabino (PSDB-PA), que propõe uma ampla alteração do “Estatuto Constitucional dos Congressistas” e alteração dos seguintes artigos da Constituição: Artigos 14, 27, 53, 102 e 105 da Constituição Federal. A chamada “PEC da Blindagem Parlamentar”.

Em continuidade, na noite do dia 25 de fevereiro, após intensa discussão, foi aprovado texto, em substituição ao original apresentado pelo Deputado Sabino (PSDB-PA), de autoria da deputada Margarete Coelho (PP-PI), o qual suprimiu do texto original as seguintes alterações:

a) Art. 14, § 9º-A. As inelegibilidades previstas na Lei Complementar a que se refere o § 9º somente produzirão seus efeitos com a observância do duplo grau de jurisdição.

b) Art. 27, § 1º-A O disposto no art. 53 aplica-se aos Deputados Estaduais, no que couber.

c) Art. 102, II, c) as ações penais decididas, em única instância, pelo Supremo Tribunal Federal ou pelos Tribunais Superiores.

d) Art. 105, II, d) as ações penais decididas, em única instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios.

Os artigos extraídos do texto da PEC 03/2021 criavam o duplo grau de jurisdição das decisões proferidas por Tribunais, nas suas competências originárias, para efeitos de configuração de inelegibilidade. Ou seja, nos processos, por exemplo, contra deputados federais, que tenham foro por prerrogativa de função (crimes cometidos durante o mandato e relacionados a função que exercem) no Supremo Tribunal Federal, após decisão condenatório, deveriam ser submetidos novamente a mesma Corte para um segundo julgamento, fato que levaria, possivelmente, a uma enxurrada de prescrição.

A deputada Margarete Coelho, sabiamente, apresentou substitutivo à Proposta de Emenda Constitucional, restringindo a discussão ao âmbito das imunidades parlamentares. Porém, mesmo com a exclusão há pontos da PEC 03/2021 que merecem um debate maior, com a adequação do texto, excluído os excessos, por exemplo a alteração do caput do artigo 53, cuja proposta incluiu: “..., cabendo, exclusivamente, a responsabilização ético-disciplinar por procedimento incompatível com o decoro parlamentar”.

A inclusão dessa parte final ao texto do artigo 53, cria uma barreira para que o deputado, que extrapola os limites da imunidade material, praticando crimes contra outro colega, por exemplo, seja responsabilizado civil e criminalmente. Ou seja, deputado ou senador que pratica um crime contra a honra, atribuindo ao colega inveridicamente a prática de crimes sexuais contra menores, gerando um isso um prejuízo moral, familiar, político ao outro parlamentar, não poderá ser processado criminalmente, remanescendo ao leniente Conselho de Ética eventual punição disciplinar.

Outra alteração que merece destaque é a introduzida ao parágrafo segundo do artigo 53:

“§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante por crime cuja inafiançabilidade seja prevista nesta Constituição, hipótese em que os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que resolva sobre a prisão pelo voto da maioria de seus membros”.
Mantida a redação proposta, o parlamentar, surpreendido na prática de um crime (flagrante), apenas será preso se o delito que estava praticando for inafiançável tal como consta do texto constitucional: 1) Racismo; 2) Tortura; 3) Tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins; 4) Terrorismo; 5) Crimes hediondos; e 6) Ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Dessa forma, se um parlamentar, hipoteticamente, é surpreendido carregando milhares de notas entre as nádegas, cujo dinheiro seria utilizado para cobrir gastos de campanha, não será preso em flagrante, uma vez que a conduta não é tipificada como inafiançável. Ou ainda, um deputado é pego espancando sua esposa não poderá ser preso em flagrante pelo mesmo motivo.

Uma solução para esse dispositivo seria excluir a exigência de que o crime seja inafiançável e incluir os pressupostos da preventiva, que respeitados – o que não é, infelizmente, pela maioria dos magistrados do Brasil, que apenas deitam olhos nas alegações do MP – seriam suficientes para aferir a necessidade e adequação da manutenção da prisão em flagrante de um parlamentar.

Outra alteração sensível foi a introduzida no parágrafo 12:
“§ 12 A medida cautelar deferida em desfavor de membro do Congresso Nacional que afete, direta ou indiretamente, o exercício do mandato e as funções parlamentares: I – somente produzirá eficácia após a confirmação da medida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal; II – não poderá ser deferida em regime de plantão forense”.

Quando essa alteração um parlamentar que esteja praticando um crime de tortura durante o recesso forense do Supremo Tribunal Federal, que vai de 20 de dezembro a 31 de janeiro do ano seguinte, não poderá ter contra ele nenhuma medida cautelar ou mesmo a realização de uma prisão em flagrante, uma vez que não poderá ser submetida, de imediato, ao plenário da Corte Suprema.

Estas aberrações no texto da PEC são fruto do açodamento da tramitação da proposta. Por obvio, que uma análise mais detida dos parlamentares, ou até mesmo a criação de uma comissão com juristas de vários matizes, poderia superar essas teratologias do texto.

Uma alteração correta foi a introdução do parágrafo 2º-A, que estabelece que “No caso da prisão em flagrante prevista no § 2º, o membro do Congresso Nacional deverá ser encaminhado à Casa respectiva logo após a lavratura do auto, permanecendo sob sua custódia até o pronunciamento definitivo do Plenário”. Todavia, há se verificar como irá ser a operacionalização dessa custódia na Câmara dos Deputados ou no Senado, uma vez que aparentemente o Congresso Nacional não consta com salas apropriadas para tal fim.

As demais alterações são positivações de entendimentos do Supremo Tribunal Federal, por exemplo a que limita o foro por prerrogativa de função (popularmente conhecido foro privilegiado) aos “crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções parlamentares”.

Mas uma questão cabe ser feita: por que essa pressa para alterar o texto constitucional passando por cima feito um rolo compressor do Regimento Interno da Câmara dos Deputados? Os senhores deputados não teriam pautas mais importantes para decidir, por exemplo a retomada do auxílio emergencial? Os senhores deputados, como fiscais da gestão do Poder Executivo, não teriam que ter a mesma gana em apurar a inapetência do governo federal no combate a pandemia ou na compra das vacinas? Como sempre a Lei de Gerson, aquela do jeitinho brasileiro e da vantagem para si próprio, impera no Congresso Nacional!

* Advogado especialista em Direito Público e professor convidado da Escola Paulista de Direito (EPD)
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