06 de janeiro, de 2021 | 14:06

O saber não ocupa espaço

João Paulo Xavier *

João Paulo Xavier: 'O nosso país tem mais de 210 milhões de habitantes. Dentre essas pessoas, quase 12 milhões ainda não sabem ler e escrever'João Paulo Xavier: 'O nosso país tem mais de 210 milhões de habitantes. Dentre essas pessoas, quase 12 milhões ainda não sabem ler e escrever'

Recebi de minha avó, Dona Carolina Maria Xavier, o seguinte ensinamento: “O saber não ocupa espaço”. Nunca em tom de sermão ou de puxão de orelha. Pelo contrário. Como um estímulo à leitura e à aprendizagem contínua. Esse entendimento ancestral sempre me acompanha. Com ele, eu me tornei o primeiro em minha família a concluir um curso superior, isso ocorreu no ano de 2012 pela UFMG. Sim.

O primeiro desde a libertação dos pais de meu bisavô em 1889 e, tanto por parte da família dele quanto por parte dos Xavier (família de minha bisavó). Conquistei essa alegria para mim e minha família de origem quilombola. Hoje, sou professor, mas minha docência começou bem cedo, por volta dos 11 anos, quando passei a ensinar a minha avó a ler. Não demorou. O desejo acumulado há tantas décadas, encontrou no neto a oportunidade, a paciência e o acolhimento para que ela aprendesse a ler e, inclusive lesse o livro de outra preta, favelada e autora com o mesmo nome dela: Carolina Maria de Jesus. Esse foi o primeiro livro que minha avó leu, aos 54 anos de idade.

Àquela idade, eu aos 11 anos, não entendi o porquê minha avó chorava com a escrita de Carolina Maria. Eu pensava que era porque ela estava triste com outras coisas e, portanto, lia o livro que peguei emprestado na biblioteca da escola, para se distrair. Bom, querido leitor, não era por isso que minha avó chorava. Mais tarde descobri que o choro e o engasgo que ela sentia enquanto lia eram causados pela proximidade das vivências das Carolinas Marias.

Uma estava atada à outra e não era apenas pelo nome, mas pela identificação profunda de suas sobrevivências. Hoje, sou mestre, doutor e coisa e tal, mas não acredito que nenhum título acadêmico que já alcancei ou dentre os que virão, conseguirão se equiparar ao privilégio e ao significado de ter auxiliado minha avó a se apropriar da tecnologia da leitura e da escrita. Escrevo este texto porque um ano novo iniciou e embora estejamos cientes de todas as responsabilidades que nos aguardam, desafios, boletos que chegam fielmente, impostos e outras coisas mais, não podemos perder de vista que novas oportunidades também surgirão.

O nosso país tem mais de 210 milhões de habitantes. Dentre essas pessoas, quase 12 milhões ainda não sabem ler e escrever. Outras estatísticas importantes são a quantidade de adultos que ainda não completaram a educação formal básica, isto é, o ensino fundamental ou médio. Veja bem, dentre os 133,7 milhões de brasileiros com mais de 25 anos, 44,2 milhões (33,1%) não terminaram o ensino fundamental e 16,8 milhões (12,5%) não concluíram o ensino médio.

Esses números foram divulgados por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os motivos que levam uma pessoa a abandonar os estudos são diversos, sei disso.

Trago, entretanto, um incentivo para que você perceba a importância da educação em nossa construção crítica como sujeitos. Quando lemos, refletimos e aprendemos as tecnologias do saber. Essas podem nos auxiliar a interpretar o mundo ao nosso redor. Tomamos decisões mais informadas e podemos conhecer e reconhecer outras possibilidades. No Brasil, temos a Educação de Jovens e Adultos, EJA, que foi criada especialmente para acolher as pessoas que desejam concluir seus estudos.

Existem idades mínimas para cada modalidade: 15 anos para aqueles que não concluíram o ensino fundamental; para o ensino médio é necessário ter no mínimo 18 anos. O melhor de tudo é que gratuito e não existe idade máxima, ou seja, idosos podem e devem se matricular se desejarem retomar os estudos ou serem alfabetizados. Além da EJA, muitos cursos gratuitos foram criados e disponibilizados devido à pandemia: culinária, jardinagem, informática, costura e, também cursos técnicos oferecidos pelo Sesi, Senac e outras instituições.

Vale muito a pena conferir e acreditar que não é tarde para retomar os seus processos de aprendizagem. Há muito para aprendermos. Talvez você já tenha concluído os seus estudos, mas conhece alguém que ainda não teve essa oportunidade. Incentive os seus familiares, amigos e converse sobre educação. Cultive o hábito da leitura. Qual foi o livro mais recente que você leu? Sobre o que era a história? O que você aprendeu com ela? Quem eram os personagens principais? Você gostou? Por quê? Por que não?

Converse sobre literatura, filmes, música, ou seja, a arte. Estimule as pessoas ao seu redor, principalmente as crianças, a cultivarem o hábito da leitura. Em seu livro Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire nos ensina que a educação, isto é, o ato de aprender é algo político e que liberta os indivíduos por meio da consciência crítica, transformadora e diferencial, que surge como uma prática de liberdade. O que isso significa? É simples! Se a educação é uma prática que nos constrói como sujeitos, educar-se e ser educado é tornar-se humano e agir diretamente para a transformação desse nosso espaço social-político.

A educação pode nos transformar em sujeitos mais solidários, atentos à sociedade e a tantas questões que impactam diretamente as nossas vidas. Procure a secretaria municipal de educação e se informe sobre a EJA, visite a biblioteca pública de nossa cidade, invista em si mesma porque não é tarde. Compartilhei com você o que minha avó me ensinou e, hoje, ouso expandir a lição aprendida com ela: “O saber não ocupa espaço” e ninguém pode tirar da gente o que a gente sabe.

* Mestre e Doutor em Linguística Aplicada (UFMG & Cefet-MG). E-mail: [email protected]
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