Expo Usipa 2024 02 - 728x90

12 de dezembro, de 2020 | 09:41

Relatório de bordo da vida

Alex Ferreira *

“De redator de estatísticas de casos positivos a parte dos números, meu caminho foi um sofrimento, mas saio fortalecido contra os negacionistas da pandemia”

“Enquanto países começam a imunizar aqui não sabemos nem sequer se teremos seringas e caminhamos a passos firmes para os 200 mil óbitos”

Então cheguei sábado(12) ao último dia do meu isolamento por causa da covid-19. Quando fui diagnosticado oficialmente com a contaminação pelo coronavírus Sars Cov2, dia 3/12 tranquei-me em casa, reativei o trabalho à distância e iniciei o protocolo de medicamentos. E pensava que estava indo bem, me esquecendo que um viajante na boleia do destino recebe surpresas. Eu que já vivi de comer tareco e mariola pensava que já tinha sofrido algo na vida. Pensava.

Enquanto trabalhava e me submetia à pressão da produção, o coronavirus ocupava o seu espaço. Os medicamentos do primeiro protocolo apenas trataram os sintomas. Meu organismo não reagiu como deveria, ao vírus. Não criou a defesa necessária e a tempo para evitar algo mais grave. O Sars Cov2 me atingiu o pulmão. Algumas pessoas conseguem, outras, não.

A “ficha caiu” apenas na segunda-feira, oito dias depois do começo dos sintomas, quando passei a ter dificuldades respiratórias. Inicialmente leves. No dia seguinte mais graves já durante o dia. Com isso, tive que suspender o trabalho na terça-feira. Naquela data fui dormir às 19h, tomado por um cansaço atípico. Uma hora depois bateu uma crise de tosse. Puxava o ar, mas nada de absorver oxigênio. Foi um afogamento no seco. Minha esposa, Andreia Klein, que também se contaminou, mas é assintomática, agiu rápido no 192. Menos de meia hora depois saía de casa “rebocado” por uma equipe do SAMU. A médica e o auxiliar dela, a quem peço perdão por não ter condições de gravar os nomes, foram brilhantes.

Entregue na Ala Covid do Pronto Socorro do Hospital Márcio Cunha, fui ter uma vivência no outro lado da história, aquela que venho noticiando por meio de números frios desde o começo dessa praga. Passar cerca de 12 horas dentro da unidade de urgência me fez esquecer a falta de ar.

A equipe da ala cuidava ao mesmo tempo de uns 20 pacientes com sintomas agravados da covid-19. Eu fui o paciente 21 da noite. Os vários equipamentos de suporte à vida, todos ligados ao mesmo tempo, geram um barulho infernal. Cada um emite um alerta sonoro. A movimentação é intensa, pois é com o trabalho de auxiliares, técnicos, enfermeiros e médicos que se definem exames, medicamentos a serem ministrados, se a pessoa é liberada, intubada na UTI ou encaminhada à enfermaria. A angústia dos familiares enquanto esperam resultados é de doer o coração.

Pois já era madrugada de quarta-feira, eu já tinha feito os exames de tomografia e saturação do oxigênio no sangue e aguardava avaliação do médico-chefe. A sala tinha começado a se esvaziar com o encaminhamento dos pacientes, quando houve o pior momento. Aportou na sala um homem levado pelo Corpo de Bombeiros de Coronel Fabriciano. À beira da morte. A situação do paciente era tão grave que desviou todos os esforços para o seu atendimento. Parou tudo na sala. Durante mais de uma hora lutaram para salvar o homem. E conseguiram.

Então com uma surpresa a cada tempo chegou ao fim minha observação. O médico José Antônio Soares Akerman, também sobrevivente da covid avaliou os exames e me informou que poderia me enviar à enfermaria, para ser medicado e acompanhado, mas com os resultados dos meus exames, certamente seria colocado para fora do hospital no dia seguinte. A alternativa era eu voltar pra casa de uma vez e me tratar em domicílio mesmo.

Foi uma conversa de meia hora, uma aula sobre o que estava acontecendo comigo, situação do pulmão um tanto quanto comprometido, conforme mostram as imagens animadas da tomografia, do quanto a covid-19 é uma doença imprevisível e em muitos casos silenciosa (vai invadindo os órgãos internos sem a pessoa sentir) e por isso às vezes é letal.

Agradeci, peguei um novo protocolo de medicamentos e saímos eu e Andreia o mais rápido possível dali, na esperança de não ter que voltarmos nunca mais.

Desde então a reação aos novos medicamentos foi a melhor possível. Ainda mais com a “enfermeira particular” na minha cola para não descuidar dos horários militares dos corticoides. Não tomei nenhum dos itens (como cloroquina) defendidos por Bolsonaro e seus seguidores. Esses nem as Emas do Palácio da Alvorada quiseram. Eu preferi confiar na ciência.

Muitas pessoas perguntam como eu devo ter me contaminado. É possível que seja no trabalho, na cobertura das eleições. Dois colegas que atuaram nas ruas dia 15 de novembro apresentaram sintomas primeiro. Fui contaminado mesmo adotando cuidados como uso frequente de máscara, higienização sistemática das mãos e alimentos trazidos do mercado e afastamento de restaurantes e outros locais de grande aglomeração de pessoas.

Finalmente, nesse sábado (12), encerrou-se o isolamento obrigatório de 14 dias desde o começo dos sintomas. De redator de estatísticas de casos positivos a parte dos números, meu caminho foi um sofrimento, mas saio fortalecido e com armas contra os negacionistas da pandemia. Sempre defendi a diversidade de opinião, mas entendo que nesse caso deve ser cassado o direito à opinião de quem nega a dor alheia, por absoluta falta de razoabilidade.

O inaceitável é que depois de politizar tudo nessa má fase de 2020 é que agora politizaram até a compra das vacinas. Enquanto países começam a imunizar aqui não sabemos nem sequer se teremos seringas e caminhamos a passos firmes para os 200 mil óbitos. Mas vamos superar, somos mais fortes que essa gente desqualificada que se aboleta nos palácios. E como indagaria Petrúcio Amorim, “quem é você pra derramar meu munguzá?”.

Essa não é apenas “uma pandemia”, ou “uma gripezinha”, mas sim uma ameaça real de morte que ronda cada família, entra nos lares, destrói a rotina produtiva nas empresas, desmonta sonhos e planos e pior, tira vidas. Jamais subestime ou negue essa realidade. Ela não tem ideologia, tem consequência.

* Jornalista, sobrevivente da covid-19

Encontrou um erro, ou quer sugerir uma notícia? Fale com o editor: [email protected]
MAK SOLUTIONS MAK 02 - 728-90

Comentários

Aviso - Os comentários não representam a opinião do Portal Diário do Aço e são de responsabilidade de seus autores. Não serão aprovados comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes. O Diário do Aço modera todas as mensagens e resguarda o direito de reprovar textos ofensivos que não respeitem os critérios estabelecidos.

Envie seu Comentário